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CRÍTICA
Autor vê o século 20 despontar em "Vivir para Contarla"
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
A primeira ficção publicada
de Gabriel García Márquez
nasceu embalada por Kafka e pelo
desejo de vingar uma afronta.
Eduardo Zalamea Borda, crítico e
diretor do suplemento literário do
jornal "El Espectador", de Bogotá,
declarara nas páginas de seu periódico que a nova geração de ficcionistas colombianos seria esquecida pela história.
Ofendido pela nota, García
Márquez, então com 20 anos, decidiu escrever um conto e enviá-lo
ao "El Espectador". Urdiu-o sob o
estímulo de "A Metamorfose",
sua leitura de cabeceira.
Zalamea não só publicou o texto
como ainda cantou loas: "Nasce
um novo e notável escritor". O
autor era tão pobre na época que
não tinha cinco centavos para
comprar o jornal e só conseguiu
lê-lo porque alguém deixara um
exemplar no banco de um táxi.
Ao ver sua ficção impressa, García Márquez se desiludiu: "O conto é uma merda". Mesmo assim,
serviu para que se tornasse conhecido. Esse é um dos muitos
episódios de "Vivir para Contarla"", primeira parte da autobiografia do Prêmio Nobel colombiano. Inicia com um pedido de
sua mãe, Luisa Santiago, para
acompanhá-la a Aracataca, onde
venderiam a casa dos avós.
A peregrinação arrancou o escritor da apatia existencial e do
impasse criativo em que se encontrava. García Márquez vivia na
boemia em Barranquilla, como
jornalista free-lancer, ganhando
"três pesos por nota diária e quatro por editorial" que produzia
para "El Espectador". Abandonara os estudos para se tornar escritor, mas não lograva seguir adiante com seu projeto de romance.
Em Aracataca, teve seu "estalo
de Vieira": "O modelo de epopéia
que eu sonhava não podia ser outro que o de minha própria família". Ao observar o vilarejo onde
passou seus primeiros oito anos,
sentiu "uma irresistível ansiedade
de escrever para não morrer". Ao
voltar para casa, jogou fora o seu
antigo romance, que agora lhe parecia artificial, e encetou outro.
Mesmo assim, não saiu de
pronto. Faltava-lhe a técnica ficcional. Inspirado em William
Faulkner, elaborou um romance
contado por meio de várias vozes.
Intitulou-o "La Hojarasca", nome
dado por sua avó à United Fruit
Company, empresa americana
que monopolizava o comércio de
frutas na região bananeira.
Em "Vivir para Contarla" está a
matéria-prima de sua ficção. O
avô Nicolás Márquez, que se mudou para Aracataca por ter matado um conhecido num duelo e
passou a velhice esperando uma
pensão que não chega, é inspiração para "Cem Anos de Solidão" e
"Ninguém Escreve ao Coronel".
A provação amorosa que sofreram os pais do escritor é a base de
"O Amor nos Tempos do Cólera".
García Márquez declara sua admiração por escritores anglo-americanos: Nathaniel Hawthorne, Virginia Woolf, Herman Melville e Faulkner. Septimus, pseudônimo do escritor no jornal "El
Heraldo" vem de Septimus Warren Smith, protagonista de "Mrs.
Dalloway", de Woolf. O autor
também relata que sua primeira
intuição de realismo fantástico
surgiu quando andava de ônibus
e julgou ter visto um fauno: "O essencial para mim não estava no
fato de o fauno ser real, mas de eu
tê-lo percebido como se fosse".
"Vivir para Contarla" foi estruturado como um "Bildungsroman", um romance de formação.
Nesse sentido, acompanhamos a
trajetória do autor, desde a infância até seu despertar artístico e político. Não por acaso a obra termina com uma viagem para o exterior, após a edição de "La Hojarasca". Márquez partiu para Genebra, onde faria a cobertura de
uma reunião de líderes mundiais.
Deveria ficar duas semanas na
Europa e permaneceu três anos.
Se a grande reviravolta criativa
resultou da viagem que fez com a
mãe para a cidade dos avós, o fato
político mais marcante do livro
foi o levante popular que se seguiu ao assassinato do líder marxista Jorge Gaitán em Bogotá, em
9 de abril de 1948. Márquez confessa que, antes da morte de Gaitán, unira-se às passeatas da oposição "sem convicção política".
Protestos, saques e violência policial acompanharam o episódio.
Na cidade, estava o então líder estudantil Fidel Castro. Manifestantes foram metralhados. Um moribundo ensanguentado implora
ajuda. O autor confessa ter participado dos saques. Um longo período de repressão se seguiu, no
qual morreram pelo menos 200
mil pessoas. Escreve Gabo: "creio
que tomei consciência que naquele 9 de abril de 1948 começara na
Colômbia o século 20". Um negro
começo, que o autor descreve
com mestria.
Vivir Para Contarla
Autor: Gabriel García Márquez
Editora: Sudamericana
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