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"DIAS & DIAS"
Gonçalves Dias ganha relato enfadonho
CRÍTICO DA FOLHA
O mau livro, mais do que o
bom, pode ser útil para mostrar com o que se faz uma literatura de qualidade. Vejamos o caso
do mais recente romance de Ana
Miranda, "Dias & Dias".
O leitor não deve esperar as intrigas tortuosas do maior sucesso
da autora, "Boca do Inferno".
Saem Gregório de Matos, o padre
Antônio Vieira e as lutas pelo poder na Bahia, entram os namoricos de Antônio Gonçalves Dias.
O problema começa com o ponto de vista adotado para narrar a
trajetória do grande poeta romântico: o da tiete enamorada
Maria Feliciana. Vizinha de Dias
em Caxias, Maranhão, a moça
permanece inebriada pelo vate,
mesmo após ele ganhar o mundo,
tornar-se poeta da corte, colecionar amantes e se casar.
Sua perspectiva é plana, laudatória, enfadonha. Vemos o maranhense como na descrição rasa de
uma biografia enciclopédica, ou
pior, no suporte material que o
texto procura mimetizar: as páginas de um caderno de fã. Feliciana
não empolga, mantendo os traços
de adolescente cabeça-dura até
depois de se tornar balzaquiana.
O problema seguinte, relacionado aos de cima, está na narrativa.
Em vez de vermos a situação desenrolar-se, recebemos tudo de
bandeja, mastigado, pela autora/
narradora. O episódio da Balaiada, por exemplo, é descrito assim:
"Foi uma correria, tiro para todo
lado". Gonçalves Dias tinha uma
irmã por quem nutria grande afeto. A relação fraternal, em vez de
ser problematizada, é resumida
em um alinhavo de clichês: "Joana tinha sobre o irmão um poder
imenso, um indizível condão, o
poder de aliviar suas mágoas...".
Então, corre a falsa notícia da
morte do poeta. Mesmo aqui,
quando esperamos um clímax no
enredo, a autora revela antes o
equívoco para então retratar a dor
de Feliciana em novas descrições
frouxas e panorâmicas: "Chorei
dias seguidos, lágrimas puras,
sem poder levantar-me da rede".
Um bom romance se faz com
uma história interessante contada
de uma perspectiva que lhe valoriza as contradições e não as achata, além de personagens minimamente desenvolvidos. Embora
óbvio, nada disso se acha no romance de Ana Miranda.
(MARCELO PEN)
Dias & Dias
Autora: Ana Miranda
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 29,50 (240 págs.)
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