São Paulo, sábado, 19 de outubro de 2002

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"DIAS & DIAS"

Gonçalves Dias ganha relato enfadonho

CRÍTICO DA FOLHA

O mau livro, mais do que o bom, pode ser útil para mostrar com o que se faz uma literatura de qualidade. Vejamos o caso do mais recente romance de Ana Miranda, "Dias & Dias".
O leitor não deve esperar as intrigas tortuosas do maior sucesso da autora, "Boca do Inferno". Saem Gregório de Matos, o padre Antônio Vieira e as lutas pelo poder na Bahia, entram os namoricos de Antônio Gonçalves Dias.
O problema começa com o ponto de vista adotado para narrar a trajetória do grande poeta romântico: o da tiete enamorada Maria Feliciana. Vizinha de Dias em Caxias, Maranhão, a moça permanece inebriada pelo vate, mesmo após ele ganhar o mundo, tornar-se poeta da corte, colecionar amantes e se casar.
Sua perspectiva é plana, laudatória, enfadonha. Vemos o maranhense como na descrição rasa de uma biografia enciclopédica, ou pior, no suporte material que o texto procura mimetizar: as páginas de um caderno de fã. Feliciana não empolga, mantendo os traços de adolescente cabeça-dura até depois de se tornar balzaquiana.
O problema seguinte, relacionado aos de cima, está na narrativa. Em vez de vermos a situação desenrolar-se, recebemos tudo de bandeja, mastigado, pela autora/ narradora. O episódio da Balaiada, por exemplo, é descrito assim: "Foi uma correria, tiro para todo lado". Gonçalves Dias tinha uma irmã por quem nutria grande afeto. A relação fraternal, em vez de ser problematizada, é resumida em um alinhavo de clichês: "Joana tinha sobre o irmão um poder imenso, um indizível condão, o poder de aliviar suas mágoas...".
Então, corre a falsa notícia da morte do poeta. Mesmo aqui, quando esperamos um clímax no enredo, a autora revela antes o equívoco para então retratar a dor de Feliciana em novas descrições frouxas e panorâmicas: "Chorei dias seguidos, lágrimas puras, sem poder levantar-me da rede".
Um bom romance se faz com uma história interessante contada de uma perspectiva que lhe valoriza as contradições e não as achata, além de personagens minimamente desenvolvidos. Embora óbvio, nada disso se acha no romance de Ana Miranda.
(MARCELO PEN)

Dias & Dias


 
Autora: Ana Miranda
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 29,50 (240 págs.)




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