São Paulo, quarta-feira, 19 de outubro de 2005

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RÉPLICA

Disco de Brown merece ao menos a chance de ser ouvido

HERMANO VIANNA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Crítica da Folha falando mal da música de Carlinhos Brown é algo tão óbvio e esperado que chega a provocar bocejos. Mas o que me irritou no texto sobre "Candombless", seu CD recém-lançado, é que o jornalista recomenda que os leitores não escutem o disco (edição de 7/10). Sei que é parte do formato da coluna "Nas Lojas", que há pouco tempo passou a ser publicada na Ilustrada das sextas-feiras. Toda microrresenha termina com um "por que ouvir" ou "por que não ouvir". Isso me parece um erro grosseiro em jornalismo cultural, que não deveria ser tão autoritário e poderia, sim, estimular que o leitor escutasse tudo para formar sua consciência crítica e poder concordar ou não com o julgamento publicado.
Fiquei mais irritado ainda pois não segui o conselho, ou ordem, do crítico e escutei o CD. Ainda bem que o fiz ("sou rebelde porque o mundo quis assim"...). Aconselho o leitor a fazer o mesmo. Mesmo que não goste do resultado, ouvir "Candombless" não é perda de tempo. Há muito pelo que se interessar em cada música e em todo o projeto.

Rústico?
Ao contrário do que diz Ronaldo Evangelista, colaborador da Ilustrada, as intervenções eletrônicas são bem comedidas e atuam para chamar a atenção para a riqueza de detalhes do acústico. Nunca a percussão do candomblé foi gravada com tanta qualidade e peso. O CD revela sua exuberância musical e explica bem a razão de tantos percussionistas virtuoses jovens aparecerem o tempo todo na Bahia. Os terreiros são uma grande escola de complexidade rítmica, surpreendente, e em "Candombless" apresentada talvez como nunca tenha sido antes. Por isso só já deveria ser audição obrigatória para qualquer pessoa que realmente se interesse por música, brasileira ou não.
As vozes também têm timbres muito pouco comuns e, na edição digitalizada do CD, contribuem para fortalecer o ambiente favorável para a produção do transe. Trance music. Engana-se quem pensa que na música das religiões africanas e afro-americanas, como é tocada hoje, pode ser escutada a "origem" ou a "raiz" da dance music eletrônica contemporânea. A música do candomblé não ficou parada no tempo, como era na Pré-História da Nigéria. Ela se transforma constantemente. Não havia candomblé na África como o que há hoje no Brasil, e sua música -misturando ritmos de povos diferentes que passaram a conviver em terreiros brasileiros- é uma criação do século 19, que não ficou estática no século 19 e que provavelmente vai continuar apresentando novidades constantes. Então: o que se toca no candomblé é tão contemporâneo quanto qualquer pop. Afirmar isso não é desrespeitar o candomblé, mas respeitá-lo verdadeiramente, não como elemento "folclórico", mas como sabedoria viva.
Ronaldo Evangelista revela, portanto, apenas seus preconceitos -ou adota um fácil lugar-comum- ao elogiar a "ancestralidade" e a "força rústica" do candomblé. Quer isolar o interesse do candomblé num passado desconectado do nosso tempo. É como chamar os índios de povos primitivos, ignorando a dinâmica história (mesmo "contra a história") que marcou sua vida sociocultural desde sempre. A música do candomblé não é nada rústica.
O dicionário "Aurélio" diz que rústico significa "Rude, grosseiro, tosco, simples". Ou: "Diz-se da planta, ou, p. ext., do jardim, do pomar, que nascem por si sós, ou que crescem à vontade, sem requerer nenhum cuidado especial". A música do candomblé é sofisticada, de extrema complexidade, e exige extrema inteligência dos devotos que a cultivam. Carlinhos Brown, como bom devoto, deixa tudo isso claro e faz a tradição seguir para frente (ou "fugir para frente", lema do poeta Waly Salomão), para onde deve seguir.
Portanto, leitor da Ilustrada: tente ouvir este disco, sim. Não precisa gostar, mas por favor não deixe de ouvir.


Hermano Vianna é antropólogo, autor de "O Mundo Funk Carioca" e "O Mistério do Samba" (ed. Jorge Zahar)

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