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RÉPLICA
Disco de Brown merece ao menos a chance de ser ouvido
HERMANO VIANNA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Crítica da Folha falando mal da
música de Carlinhos Brown é algo
tão óbvio e esperado que chega a
provocar bocejos. Mas o que me
irritou no texto sobre "Candombless", seu CD recém-lançado, é
que o jornalista recomenda que
os leitores não escutem o disco
(edição de 7/10). Sei que é parte do
formato da coluna "Nas Lojas",
que há pouco tempo passou a ser
publicada na Ilustrada das sextas-feiras. Toda microrresenha
termina com um "por que ouvir"
ou "por que não ouvir". Isso me
parece um erro grosseiro em jornalismo cultural, que não deveria
ser tão autoritário e poderia, sim,
estimular que o leitor escutasse
tudo para formar sua consciência
crítica e poder concordar ou não
com o julgamento publicado.
Fiquei mais irritado ainda pois
não segui o conselho, ou ordem,
do crítico e escutei o CD. Ainda
bem que o fiz ("sou rebelde porque o mundo quis assim"...).
Aconselho o leitor a fazer o mesmo. Mesmo que não goste do resultado, ouvir "Candombless"
não é perda de tempo. Há muito
pelo que se interessar em cada
música e em todo o projeto.
Rústico?
Ao contrário do que diz Ronaldo Evangelista, colaborador da
Ilustrada, as intervenções eletrônicas são bem comedidas e atuam
para chamar a atenção para a riqueza de detalhes do acústico.
Nunca a percussão do candomblé
foi gravada com tanta qualidade e
peso. O CD revela sua exuberância musical e explica bem a razão
de tantos percussionistas virtuoses jovens aparecerem o tempo
todo na Bahia. Os terreiros são
uma grande escola de complexidade rítmica, surpreendente, e em
"Candombless" apresentada talvez como nunca tenha sido antes.
Por isso só já deveria ser audição
obrigatória para qualquer pessoa
que realmente se interesse por
música, brasileira ou não.
As vozes também têm timbres
muito pouco comuns e, na edição
digitalizada do CD, contribuem
para fortalecer o ambiente favorável para a produção do transe.
Trance music. Engana-se quem
pensa que na música das religiões
africanas e afro-americanas, como é tocada hoje, pode ser escutada a "origem" ou a "raiz" da dance music eletrônica contemporânea. A música do candomblé não
ficou parada no tempo, como era
na Pré-História da Nigéria. Ela se
transforma constantemente. Não
havia candomblé na África como
o que há hoje no Brasil, e sua música -misturando ritmos de povos diferentes que passaram a
conviver em terreiros brasileiros- é uma criação do século 19,
que não ficou estática no século 19
e que provavelmente vai continuar apresentando novidades
constantes. Então: o que se toca
no candomblé é tão contemporâneo quanto qualquer pop. Afirmar isso não é desrespeitar o candomblé, mas respeitá-lo verdadeiramente, não como elemento
"folclórico", mas como sabedoria
viva.
Ronaldo Evangelista revela,
portanto, apenas seus preconceitos -ou adota um fácil lugar-comum- ao elogiar a "ancestralidade" e a "força rústica" do candomblé. Quer isolar o interesse do
candomblé num passado desconectado do nosso tempo. É como
chamar os índios de povos primitivos, ignorando a dinâmica história (mesmo "contra a história")
que marcou sua vida sociocultural desde sempre. A música do
candomblé não é nada rústica.
O dicionário "Aurélio" diz que
rústico significa "Rude, grosseiro,
tosco, simples". Ou: "Diz-se da
planta, ou, p. ext., do jardim, do
pomar, que nascem por si sós, ou
que crescem à vontade, sem requerer nenhum cuidado especial". A música do candomblé é
sofisticada, de extrema complexidade, e exige extrema inteligência
dos devotos que a cultivam. Carlinhos Brown, como bom devoto,
deixa tudo isso claro e faz a tradição seguir para frente (ou "fugir
para frente", lema do poeta Waly
Salomão), para onde deve seguir.
Portanto, leitor da Ilustrada:
tente ouvir este disco, sim. Não
precisa gostar, mas por favor não
deixe de ouvir.
Hermano Vianna é antropólogo, autor
de "O Mundo Funk Carioca" e "O Mistério do Samba" (ed. Jorge Zahar)
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