São Paulo, quarta-feira, 19 de outubro de 2005

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TELEVISÃO/ARTIGO

Há algo de insuficiente na imagem grave do referendo

ESTHER HAMBURGER
ESPECIAL PARA A FOLHA

A campanha para o referendo sobre o controle de armas vem surpreendendo. O "não", ou, é sempre bom lembrar, o apoio ao comércio de armas, cresce. Apesar do apelo razoável de inúmeras lideranças profissionais, artistas, articulistas e políticos.
Depois de meses de drama político no Congresso Nacional, a consulta popular sobre a proibição da venda de armas, também uma iniciativa do Parlamento, adquire um sentido diverso daquele imaginado por seus idealizadores. Técnicos no assunto, em tom muito razoável, fornecem dados que justificam o "sim". Uma policial militar em particular me sensibilizou. Artistas que costumam colaborar também emprestam seu tempo e sua imagem para a causa justa.
Talvez diante do desenrolar da crise política, mas também de acordo com tendências internacionais, o apelo incisivo dos apoiadores do "não", nas propagandas gratuitas no rádio e na televisão, fala de maneira contundente a um mundo onde o comércio de armas é central -na ficção e na realidade.
Depois de mais um capítulo no desgaste das instituições públicas, quem acredita que o Estado será capaz de dar conta de sua tarefa mais básica que é a segurança?

Indústria privada
No documentário "Violência S/A", de Eduardo Benaim, Jorge Saad Jafet e Newton Cannito, que a TV Cultura oportunamente exibe hoje à noite, é possível tomar contato com uma variedade de tipos cuja vida se desenvolve em torno da segurança privada.
Diferente da maioria dos documentários que tratam do tema, "Violência S/A" aborda vítimas da violência urbana -em geral brancos de classe média alta- e suas diversas estratégias de defesa. Simpáticos profissionais ligados ao comércio de carros blindados, sistemas de circuito interno de vídeo, militantes do uso privado de armas, uma sensual trabalhadora da segurança privada indicam que vivemos em um mundo que há muito legitimou o comércio da segurança. O legendário coronel Erasmo Dias tem mais uma chance de dar o seu recado.
A ironia com que a voz do narrador em "off" comenta o universo retratado no filme procura sugerir que essas técnicas só contribuem para acirrar a violência. No filme como na campanha há algo de insuficiente nessa voz grave.
Para além da conjuntura brasileira, a campanha do "não" sensibiliza os que reconhecem uma sociedade em que um galã como Brad Pitt pode interpretar um herói matador privado profissional, em "Sr. e Sra. Smith". Aliás, a personagem que aparece na penumbra em "Violência S/A" bem poderia ter se inspirado na mulher, também matadora, do personagem de Pitt.
Há um certo clima hobbesiano no ar. A incapacidade que as instituições públicas revelam em exercer sua autoridade na defesa da vida dos cidadãos legitima a busca de soluções bélicas individuais. Ao menos para quem pode pagar o aparato.
Não é à toa que também, ao contrário do que se esperava, os adeptos da liberdade de comercializar armas, de acordo com a pesquisa do Ibope, são em larga medida pessoas de alto grau de escolaridade e nível de renda.


Esther Hamburguer é antropóloga e professora da ECA-USP

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