São Paulo, sexta-feira, 19 de outubro de 2007

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CARLOS HEITOR CONY

Zola e o romance do olhar

A influência que exerceu em Cézanne, Degas, Renoir, Manet e Monet é até hoje inédita na história

O ROMANCISTA que levou o naturalismo ao seu pique mais radical era um projeto de fotógrafo. A expressão literária, para ele, era insuficiente para captar a realidade crua, sem artifícios.
Antecedeu o cinema e o "nouveau roman". A ingenuidade de algumas incursões no campo da ciência social e psicológica fica por conta do seu temperamento inquieto demais para a pesquisa e a experimentação dos laboratórios. Daí o seu envolvimento com os impressionistas do final do século 19, a ânsia de chegar à verdade possível através da imagem possível.
Recém-chegado de Aix, ele vasculhou Paris com seu olhar voraz, tomando notas sobre o que via: a taberna, o prostíbulo, o armazém, o mercado, a rua, o cavalo, a prostituta, o operário, a calha com água suja de sabão, a sarjeta, a carroça, o tanque de lavar roupa, o trem, o calor das caldeiras, o pó das minas de carvão.
Quando iniciou sua carreira de escritor, a fotografia era um embrião. Caso contrário, não seria de espantar se Zola tivesse optado pela câmara para retratar a sua realidade.
Antes de se entusiasmar pela fotografia, Zola já se ligara aos pintores que abandonavam os estúdios e pintavam suas impressões à luz natural.
A influência que exerceu em Cézanne, Degas, Renoir, Manet e Monet é até hoje inédita na história. Nunca uma escola de artistas plásticos aprendeu tanto com um escritor.
A recíproca funcionou: nunca um escritor foi tão influenciado por aqueles que começavam a ver a realidade tal como era e não como os códigos da estética queriam que fosse. "A arte é uma parte da natureza "vista" através de um temperamento." Ver a realidade por um ângulo pessoal era inicialmente uma fórmula para combater o romantismo.
Mais tarde, transformou-se num caminho. Não há notícia de que tenha tentado a fotografia durante sua fase criadora, em Paris. Foi no exílio de Londres que ele saiu de máquina na mão e sem nenhuma idéia na cabeça. "Abaixo a Inspiração!" dizia ele, ao começar a série de seus romances "Rougon-Macquart", "História Natural e Social de uma Família sob o Segundo Império".
Fazia croquis das ruas, das casas, anotava o nome das peças de tecido no "Bonheur de Dames", a procedência dos repolhos no "Les Halles". Contam que se deixou atropelar por uma carroça, para sentir pessoalmente a experiência. Aprendeu a dirigir uma locomotiva para fazer o seu Jacques Lantier ("A Besta Humana").
Antes de "L'Assommoir", ele percorreu as tascas parisienses, escolhendo a locação do romance. Outro escritor teria feito uma colagem de diversas tabernas, inventando aquela que lhe parecesse ideal para cenário de sua história. Zola situou seu romance na "Rue de La Goutte d'Or" e ali encontrou a lavanderia de Gervaise Macquart.
Anotações de Zola : "Numa extremidade da rua, é a descida: à direita, oficinas de cordas e tanoeiros; à esquerda, armazéns. Na metade da rua, casas baixas, de um só andar. Anúncios pregados nas portas. Depois da lavanderia, uma acácia, depois um estábulo de cavalos de aluguel. As casas baixas têm as cores amarela, verde, vermelha e azul. Na direção da "Rue dês Poissoniers", muita gente. A casa tem 11 janelas à frente e é de seis andares. Janelas com as folhas pretas desconjuntadas. No meio, a porta arqueada. À direita, casa de bebidas; à esquerda, loja de carvão. Pelo corredor, passa uma calha com água sempre ensaboada. Quatro escadas, duas para cada lado. No pátio, só operários. Ao redor do botequim o chão é úmido. Uma placa onde se lê: "Consertam-se relógios de parede e de bolso". Um homem carregando uma escada".
Se tivesse publicado esses apontamentos teria deixado o pessoal do "roman du regard" sem emprego. Exemplo de "O Ano Passado em Marienbad" (Robbe-Grillet): "Na portaria, do lado esquerdo, as chaves dos quartos 201, 203, 205, 207, 209. Do lado direito, as chaves do 202, 204, 206, 208". Ou este outro trecho de "La Jalousie": "Na alameda direita, uma árvore, outra árvore, um banco. Na outra alameda, uma árvore, um bebedouro. No centro, o chafariz. Depois, a grama, a cerca, o castelo".
Uma das diferenças entre Robbe-Grillet e Zola é que em 1869 não havia cinema e a arte fotográfica era uma brincadeira de laboratório.


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