São Paulo, segunda, 19 de outubro de 1998

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FREE JAZZ SP, SEXTA-FEIRA
Ben Harper canta sem sorrir, sem se mover

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
da Reportagem Local

Ben Harper foi, na sexta-feira passada, o primeiro cavalo de raça a "pocotear" no Main Stage -oh, mundo globalizado que não nos permite falar em Palco Principal- daquilo que seria a mais disputada corrida de cavalos do ano no Jockey Club, quer dizer, no Free Jazz Festival 1998.
O circo estava armado. A chuva e as goteiras de 1996 e a lotação de 1997 voltaram mais tímidas, mas não deixaram de comparecer. O astro pop colocou camiseta verde-amarela, que afinal não se pode deixar de fazer um afago a mais nos índios futebolistas brasileiros.
Ben Harper, esse desconhecido, fez ritual completo de apresentação. Os brasileiros não sabíamos, mas ele é o homem que não sorri, o homem que não se move. Passa quase a totalidade do show sentado, imóvel, sério, quase sempre de olho fixo na exótica guitarra Weissenborn que repousa quase o tempo todo em seu colo.
E ela é a grande estrela do show. O homem que tem a mais sedosa das vozes dos 90 contamina tudo que faz de agressividade ao se relacionar com ela.
Expulsa o Marvin Gaye que mora em sua voz e exterioriza o Jimi Hendrix esquizofrênico que há em sua imobilidade. Não à toa, o auge do espetáculo se dá em set gigantesco em que Harper só parece existir para o Weissenborn, e vice-versa.
Fica evidente: ele se relaciona com seu instrumento com muito mais habilidade do que com o mundo, com as pessoas -o público parece-lhe um monstro de sete cabeças que ele tem que evitar a todo custo; assim, camisa verde-amarela se torna mera micagem subdesenvolvida.
Talvez por isso ele, que veio resgatar a docilidade no rock -sim, ele é roqueiro- nos álbuns "Welcome to the Cruel World" (94) e "Fight for Your Mind" (95), torne-se tão agressivo no palco (algo que já se esboçava em "The Will to Live", seu disco mais recente).
É uma inversão de clichês. No palco, Ben não é um lobo em pele de cordeiro, mas um cordeiro em pele de lobo. Shows precisam ser pesados (o Massive Attack comprovaria isso no dia seguinte) quando o artista ainda não está seguro, não confia em si plenamente.
Aí vira aquilo de sempre: o baterista demonstra que toca muita bateria, o guitarrista, que toca muita guitarra, todas as músicas precisam aparecer em versões muito longas -e o público que durma.
Quando foge dessas armadilhas, o esperado se revela: em "Excuse Me Mr." (bastante modificada), "Fight for Your Mind", "Like a King", "I'll Rise" (a única em que fica de pé, batendo palmas envergonhadas), ele se mantém carrancudo, mas se confirma como o soulman em potencial que é.
Triste é que, no provincianismo que ainda povoa nosso festival (ironia, a goteira mais insistente pingava justamente onde o Ministério advertia que o Free Jazz causa diversos males à saúde), tudo que Harper tinha ou não a mostrar ficava sendo só cosmética, pretexto.
Porque tudo estava pobremente disposto como uma corrida de cavalos -não havia lugar para lobos ou cordeiros-, mais que como um festival de música.
Bandas sem qualquer relação entre elas precisavam dividir atenções, e -aí o grande equívoco-, nas duas primeiras noites, os cavalos de porte largaram antes dos pangarés.
Por isso Ben Harper deixou o Main Stage para abrir caminho à sub-banda Dave Matthews Band, que ficou ali lembrando que um dia existiu um cara chamado Rod Stewart. Anticlímax louco.
No dia seguinte, a disparidade entre os garanhões foi elevada ao nível de tragédia. Kraftwerk -blasfêmia!- abriu o show do Massive Attack, que jogou fumaça e trapaça nos olhos de quem havia vivido algum tipo de revelação durante o que primeiro aconteceu no Palco Principal.
Dispostas as coisas assim, perderam-se algumas experiências individuais na bobagem de se ficar comparando Dave Matthews Band com Ben Harper, Massive Attack com Kraftwerk. Era tudo música -no caso do Kraftwerk, arte-, não corrida de cavalo.



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