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FREE JAZZ SP, SEXTA-FEIRA
Ben Harper canta sem sorrir, sem se mover
PEDRO ALEXANDRE SANCHES
da Reportagem Local
Ben Harper foi, na sexta-feira
passada, o primeiro cavalo de raça
a "pocotear" no Main Stage -oh,
mundo globalizado que não nos
permite falar em Palco Principal-
daquilo que seria a mais disputada
corrida de cavalos do ano no Jockey Club, quer dizer, no Free Jazz
Festival 1998.
O circo estava armado. A chuva e
as goteiras de 1996 e a lotação de
1997 voltaram mais tímidas, mas
não deixaram de comparecer. O
astro pop colocou camiseta verde-amarela, que afinal não se pode
deixar de fazer um afago a mais
nos índios futebolistas brasileiros.
Ben Harper, esse desconhecido,
fez ritual completo de apresentação. Os brasileiros não sabíamos,
mas ele é o homem que não sorri, o
homem que não se move. Passa
quase a totalidade do show sentado, imóvel, sério, quase sempre de
olho fixo na exótica guitarra Weissenborn que repousa quase o tempo todo em seu colo.
E ela é a grande estrela do show.
O homem que tem a mais sedosa
das vozes dos 90 contamina tudo
que faz de agressividade ao se relacionar com ela.
Expulsa o Marvin Gaye que mora
em sua voz e exterioriza o Jimi
Hendrix esquizofrênico que há em
sua imobilidade. Não à toa, o auge
do espetáculo se dá em set gigantesco em que Harper só parece
existir para o Weissenborn, e vice-versa.
Fica evidente: ele se relaciona
com seu instrumento com muito
mais habilidade do que com o
mundo, com as pessoas -o público parece-lhe um monstro de sete
cabeças que ele tem que evitar a todo custo; assim, camisa verde-amarela se torna mera micagem
subdesenvolvida.
Talvez por isso ele, que veio resgatar a docilidade no rock -sim,
ele é roqueiro- nos álbuns "Welcome to the Cruel World" (94) e
"Fight for Your Mind" (95), torne-se tão agressivo no palco (algo que
já se esboçava em "The Will to Live", seu disco mais recente).
É uma inversão de clichês. No
palco, Ben não é um lobo em pele
de cordeiro, mas um cordeiro em
pele de lobo. Shows precisam ser
pesados (o Massive Attack comprovaria isso no dia seguinte)
quando o artista ainda não está seguro, não confia em si plenamente.
Aí vira aquilo de sempre: o baterista demonstra que toca muita bateria, o guitarrista, que toca muita
guitarra, todas as músicas precisam aparecer em versões muito
longas -e o público que durma.
Quando foge dessas armadilhas,
o esperado se revela: em "Excuse
Me Mr." (bastante modificada),
"Fight for Your Mind", "Like a
King", "I'll Rise" (a única em que
fica de pé, batendo palmas envergonhadas), ele se mantém carrancudo, mas se confirma como o
soulman em potencial que é.
Triste é que, no provincianismo
que ainda povoa nosso festival
(ironia, a goteira mais insistente
pingava justamente onde o Ministério advertia que o Free Jazz causa
diversos males à saúde), tudo que
Harper tinha ou não a mostrar ficava sendo só cosmética, pretexto.
Porque tudo estava pobremente
disposto como uma corrida de cavalos -não havia lugar para lobos
ou cordeiros-, mais que como
um festival de música.
Bandas sem qualquer relação entre elas precisavam dividir atenções, e -aí o grande equívoco-,
nas duas primeiras noites, os cavalos de porte largaram antes dos
pangarés.
Por isso Ben Harper deixou o
Main Stage para abrir caminho à
sub-banda Dave Matthews Band,
que ficou ali lembrando que um
dia existiu um cara chamado Rod
Stewart. Anticlímax louco.
No dia seguinte, a disparidade
entre os garanhões foi elevada ao
nível de tragédia. Kraftwerk
-blasfêmia!- abriu o show do
Massive Attack, que jogou fumaça
e trapaça nos olhos de quem havia
vivido algum tipo de revelação durante o que primeiro aconteceu no
Palco Principal.
Dispostas as coisas assim, perderam-se algumas experiências individuais na bobagem de se ficar
comparando Dave Matthews Band
com Ben Harper, Massive Attack
com Kraftwerk. Era tudo música
-no caso do Kraftwerk, arte-,
não corrida de cavalo.
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