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São Paulo, quarta-feira, 19 de novembro de 2003

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MÚSICA/CRÍTICA

Gal vai ao samba-canção de fossa com um sorriso na voz

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL

Gal Costa gosta de dizer que quando lança um disco é preciso, antes de tudo, que se reconheça que ela está cantando bem demais, lindamente, divinamente. Agora que lança "Todas as Coisas e Eu", infelizmente é preciso contradizer nossa estrela.
Ao longo de 36 anos de carreira discográfica, Gal vem sempre cantando linda, divinamente -mesmo quando a receita desanda. É seu feijão-com-arroz, para ela cantar assim é ponto de partida, nunca ponto de chegada.
Ainda que tal virtude a leve ao meio do caminho, não é o percurso todo. Marina Lima, por exemplo, sofre altos e baixos, mas tem edificado trajetória altiva mesmo quando a voz lhe foge. Gal é o simétrico oposto. Canta que só ela, mas descuidou do conceito, do contexto, do ponto de chegada.
"Todas as Coisas e Eu" é um disco antitropicalista, de canções antigas cimentadas, quase sempre, pela fossa profunda aprendida pela Gal menina no samba-canção dos anos 50.
Canta-os lindamente, mas de modo risonho, como se a boca da cantora ostentasse o tempo todo uma alegria boba, como se temas de dor-de-cotovelo fossem bossas tropicais de sorriso, amor e flor.
Exceto quando a canção permite algum otimismo (caso da leitura forte de "Alguém como Tu"), Gal parece não querer a tristeza que canta, ou então se põe cantar alegria que as letras escolhidas desautorizam. Dá curto-circuito.
A interpretação que ecoa no ouvido ao final do disco é a de "E Daí? (Proibição Inútil e Ilegal)", do depois cultor do Brasil militar Miguel Gustavo (autor de "Pra Frente, Brasil"). "Proibiram que eu te amasse/ proibiram que eu te visse/ proibiram que eu saísse", lamenta-se a voz prisioneira.
O sistema fonográfico que a criou não tem sido generoso com sua voz; talvez aí se justifique a sensação de proibição e a perda de nitidez que o canto não exibe, mas o imaginário exprime.
Mas, antes tudo, Gal parece conversar consigo própria quando diz "proibiram que eu te amasse", "proibiram que eu saísse". Acende-se a luz do título do CD: todas as coisas primeiro, ela por último, lá atrás. Gal não tem sido generosa consigo ultimamente.
Até aqui está posto o lado escuro da lua. "Todas as Coisas e Eu" guarda lá suas afrontas aos outros, não só açoite autodirigido. Sendo antitropicalista e simulando sambas chochos em Noel, Lupicinio e Nelson Cavaquinho, seu disco diz não a Caetano e a Gil, o que tem lá seu sabor de aventura.
Em "Ave Maria do Morro", a afronta fulmina o canto antigo de Dalva de Oliveira, o que também traz lá seu viço. Tentando simular os agudos de Dalva, Gal soa paródica e constrói o momento menos feliz do CD. É como um sacrifício, para mostrar que o passado é uma roupa que já não serve -e que nem tampouco ela quer mais usar. Avante, grande cantora.


Todas as Coisas e Eu   
Artista: Gal Costa
Lançamento: Indie/Som Livre
Quanto: R$ 28, em média



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