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MÚSICA/CRÍTICA
Gal vai ao samba-canção de fossa com um sorriso na voz
PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL
Gal Costa gosta de dizer
que quando lança um disco é
preciso, antes de tudo, que se reconheça que ela está cantando
bem demais, lindamente, divinamente. Agora que lança "Todas as
Coisas e Eu", infelizmente é preciso contradizer nossa estrela.
Ao longo de 36 anos de carreira
discográfica, Gal vem sempre
cantando linda, divinamente
-mesmo quando a receita desanda. É seu feijão-com-arroz, para ela cantar assim é ponto de partida, nunca ponto de chegada.
Ainda que tal virtude a leve ao
meio do caminho, não é o percurso todo. Marina Lima, por exemplo, sofre altos e baixos, mas tem
edificado trajetória altiva mesmo
quando a voz lhe foge. Gal é o simétrico oposto. Canta que só ela,
mas descuidou do conceito, do
contexto, do ponto de chegada.
"Todas as Coisas e Eu" é um disco antitropicalista, de canções antigas cimentadas, quase sempre,
pela fossa profunda aprendida
pela Gal menina no samba-canção dos anos 50.
Canta-os lindamente, mas de
modo risonho, como se a boca da
cantora ostentasse o tempo todo
uma alegria boba, como se temas
de dor-de-cotovelo fossem bossas
tropicais de sorriso, amor e flor.
Exceto quando a canção permite algum otimismo (caso da leitura forte de "Alguém como Tu"),
Gal parece não querer a tristeza
que canta, ou então se põe cantar
alegria que as letras escolhidas desautorizam. Dá curto-circuito.
A interpretação que ecoa no ouvido ao final do disco é a de "E
Daí? (Proibição Inútil e Ilegal)",
do depois cultor do Brasil militar
Miguel Gustavo (autor de "Pra
Frente, Brasil"). "Proibiram que
eu te amasse/ proibiram que eu te
visse/ proibiram que eu saísse",
lamenta-se a voz prisioneira.
O sistema fonográfico que a
criou não tem sido generoso com
sua voz; talvez aí se justifique a
sensação de proibição e a perda
de nitidez que o canto não exibe,
mas o imaginário exprime.
Mas, antes tudo, Gal parece
conversar consigo própria quando diz "proibiram que eu te amasse", "proibiram que eu saísse".
Acende-se a luz do título do CD:
todas as coisas primeiro, ela por
último, lá atrás. Gal não tem sido
generosa consigo ultimamente.
Até aqui está posto o lado escuro da lua. "Todas as Coisas e Eu"
guarda lá suas afrontas aos outros, não só açoite autodirigido.
Sendo antitropicalista e simulando sambas chochos em Noel, Lupicinio e Nelson Cavaquinho, seu
disco diz não a Caetano e a Gil, o
que tem lá seu sabor de aventura.
Em "Ave Maria do Morro", a
afronta fulmina o canto antigo de
Dalva de Oliveira, o que também
traz lá seu viço. Tentando simular
os agudos de Dalva, Gal soa paródica e constrói o momento menos
feliz do CD. É como um sacrifício,
para mostrar que o passado é
uma roupa que já não serve -e
que nem tampouco ela quer mais
usar. Avante, grande cantora.
Todas as Coisas e Eu
Artista: Gal Costa
Lançamento: Indie/Som Livre
Quanto: R$ 28, em média
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