|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CRÍTICA
Tragédia com câmera na mão é operação de risco
JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA
"Contra Todos" é uma
operação de risco, ou antes um conjunto de operações de
risco. É natural que cause incômodo a uma parte do público e
desconcerto a parte da crítica.
A começar pela ambientação. É
uma história de periferia paulistana que, em vez de bandidos sujos
e mal-encarados, coloca em cena
uma família de classe média baixa, com seu carro, aparelho de
som, seus vídeos, rezas e discussões à mesa do almoço.
Sim, existem famílias na periferia. Assim como em Pinheiros ou
nos Jardins, há ali consumo, poupança, traições, crises morais,
prazeres pequeno-burgueses, desejos frustrados. A violência, por
isso, não é só a das chacinas e dos
tiroteios entre traficantes, mas
tem as origens mais variadas.
É por isso que naqueles altiplanos de ruas mal traçadas, lajes
sem telhado e feiúra infinita que
divisamos da janela do carro
quando saímos de viagem há
também lugar para a tragédia.
Esse foi o segundo risco que Roberto Moreira correu ao fazer
"Contra Todos": situar uma tragédia moral num espaço que em
geral conhecemos apenas pelo registro da reportagem policial, do
documentário político ou do anedotário pitoresco.
Os personagens do filme estão
cindidos entre seus projetos pessoais e um destino que escapa ao
seu controle. O matador evangélico Teodoro (Giulio Lopes), sua
volúvel mulher Claudia (Leona
Cavalli), sua filha adolescente Soninha (Silvia Lourenço) e seu parceiro de ofício Waldomiro (Aílton
Graça) -todos parecem se esforçar em vão para fugir de uma trama maior que os aprisiona (a ordem social? a natureza humana? a
vontade divina?).
Mas não há propriamente um
fatalismo nessa fabulação. Como
convém a uma tragédia moderna
e crítica, o filme tem, praticamente, dois finais concomitantes: um
(o destino de Waldomiro) em que
tudo se amarra e se fecha, e outro
(o destino de Soninha) que se
mantém em aberto. Um explícito
e o outro oculto.
A maneira de construir e desdobrar essa tragédia numa narrativa
cinematográfica também rejeitou
os caminhos conhecidos e trilhou
uma série de cordas bambas: entre o ensaio exaustivo e o improviso, a preparação rigorosa e a incorporação do acidente de filmagem, a ambição da proposta e a
modéstia dos meios.
O tom da abordagem é dado
por uma das primeiras cenas do
filme, em que se assiste a um vídeo doméstico. Acompanharemos a história dos personagens
por uma câmera ágil e indiscreta
como a dos "home movies".
Não são os atores que se colocam de uma determinada maneira diante da câmera, para atender
a uma decupagem pré-ordenada.
É a câmera que persegue os personagens, buscando sondar seus
atos e intenções.
Tragédia e câmera na mão não
são coisas que costumam andar
juntas. Mas a precariedade é só
aparente. Operando essa inquieta
câmera digital está um dos mais
refinados fotógrafos e diretores de
arte do nosso cinema, Adrian
Cooper. É preciso muita competência para mimetizar o amadorismo e, ao mesmo tempo, expor
a essência do drama.
Para que todos esses esforços
aparentemente contraditórios tivessem vida e impacto, o elenco
tinha que compreender o projeto
e mergulhar nele até o fundo. Foi
o que aconteceu. Não por acaso,
vários dos prêmios conquistados
por "Contra Todos" foram para
os atores, sobretudo Giulio Lopes
e Silvia Lourenço. Eles são o corpo
e a alma do filme.
Contra Todos
Direção: Roberto Moreira
Produção: Brasil, 2004
Com: Giulio Lopes, Silvia Lourenço
Quando: a partir de hoje nos cines
Anália Franco, HSBC Belas Artes, Metrô
Santa Cruz e circuito
Texto Anterior: Diálogos foram desenvolvidos em colaboração Próximo Texto: "Capitão Sky e o Mundo de Amanhã": Fantasia saudosista necessita de atualidade Índice
|