São Paulo, sexta-feira, 19 de novembro de 2004

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CRÍTICA

Tragédia com câmera na mão é operação de risco

JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA

"Contra Todos" é uma operação de risco, ou antes um conjunto de operações de risco. É natural que cause incômodo a uma parte do público e desconcerto a parte da crítica.
A começar pela ambientação. É uma história de periferia paulistana que, em vez de bandidos sujos e mal-encarados, coloca em cena uma família de classe média baixa, com seu carro, aparelho de som, seus vídeos, rezas e discussões à mesa do almoço.
Sim, existem famílias na periferia. Assim como em Pinheiros ou nos Jardins, há ali consumo, poupança, traições, crises morais, prazeres pequeno-burgueses, desejos frustrados. A violência, por isso, não é só a das chacinas e dos tiroteios entre traficantes, mas tem as origens mais variadas.
É por isso que naqueles altiplanos de ruas mal traçadas, lajes sem telhado e feiúra infinita que divisamos da janela do carro quando saímos de viagem há também lugar para a tragédia.
Esse foi o segundo risco que Roberto Moreira correu ao fazer "Contra Todos": situar uma tragédia moral num espaço que em geral conhecemos apenas pelo registro da reportagem policial, do documentário político ou do anedotário pitoresco.
Os personagens do filme estão cindidos entre seus projetos pessoais e um destino que escapa ao seu controle. O matador evangélico Teodoro (Giulio Lopes), sua volúvel mulher Claudia (Leona Cavalli), sua filha adolescente Soninha (Silvia Lourenço) e seu parceiro de ofício Waldomiro (Aílton Graça) -todos parecem se esforçar em vão para fugir de uma trama maior que os aprisiona (a ordem social? a natureza humana? a vontade divina?).
Mas não há propriamente um fatalismo nessa fabulação. Como convém a uma tragédia moderna e crítica, o filme tem, praticamente, dois finais concomitantes: um (o destino de Waldomiro) em que tudo se amarra e se fecha, e outro (o destino de Soninha) que se mantém em aberto. Um explícito e o outro oculto.
A maneira de construir e desdobrar essa tragédia numa narrativa cinematográfica também rejeitou os caminhos conhecidos e trilhou uma série de cordas bambas: entre o ensaio exaustivo e o improviso, a preparação rigorosa e a incorporação do acidente de filmagem, a ambição da proposta e a modéstia dos meios.
O tom da abordagem é dado por uma das primeiras cenas do filme, em que se assiste a um vídeo doméstico. Acompanharemos a história dos personagens por uma câmera ágil e indiscreta como a dos "home movies".
Não são os atores que se colocam de uma determinada maneira diante da câmera, para atender a uma decupagem pré-ordenada. É a câmera que persegue os personagens, buscando sondar seus atos e intenções.
Tragédia e câmera na mão não são coisas que costumam andar juntas. Mas a precariedade é só aparente. Operando essa inquieta câmera digital está um dos mais refinados fotógrafos e diretores de arte do nosso cinema, Adrian Cooper. É preciso muita competência para mimetizar o amadorismo e, ao mesmo tempo, expor a essência do drama.
Para que todos esses esforços aparentemente contraditórios tivessem vida e impacto, o elenco tinha que compreender o projeto e mergulhar nele até o fundo. Foi o que aconteceu. Não por acaso, vários dos prêmios conquistados por "Contra Todos" foram para os atores, sobretudo Giulio Lopes e Silvia Lourenço. Eles são o corpo e a alma do filme.


Contra Todos
    
Direção: Roberto Moreira
Produção: Brasil, 2004
Com: Giulio Lopes, Silvia Lourenço
Quando: a partir de hoje nos cines Anália Franco, HSBC Belas Artes, Metrô Santa Cruz e circuito



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