São Paulo, domingo, 19 de novembro de 2006

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FERREIRA GULLAR

Retrato do amigo


Éramos uma turma de apaixonados por arte e literatura, perdidões na então capital do país

O RETRATO , já um tanto apagado, é de 1953. Ali estamos, eu, ele e Amelinha, passando em frente ao Passeio Público, no Rio.
Eu, muito magro, visto o meu único paletó daquela época, marrom, curtido de sol e poeira; ele, já com indícios de calvície, embora tivesse três anos a menos que eu. Não lembro para onde íamos naquela tarde nem de onde vínhamos, mas é a única foto em que aparecemos juntos, mesmo porque nenhum de nós possuía máquina fotográfica, nem mesmo um quarto para morar; ele morava numa vaga e eu mudara recentemente para o apartamento de Amelinha, na rua Fialho, na Glória. Cometera os últimos catastróficos poemas de "A Luta Corporal", que ele pedira para ler, prometendo escrever um longo ensaio.
Pouco depois, no dia 10 de setembro, completava eu, sem comemoração, 23 anos de idade. Estava, nesse dia, em casa, quando soa a campainha. Ao abrir a porta, levo um susto. Tinha diante de mim um homem grande, de olhos verdes enormes, em mangas de camisa: Oswald de Andrade! Como era possível estar à minha porta o lendário autor de "Serafim Ponte Grande" e "Pau-Brasil"? O homem que escrevera o Manifesto Antropófago? E ele, Oliveira Bastos, ria de meu susto. O poeta me trouxe de presente dois livros seus, com a dedicatória de "seu fã, Oswald". Tudo armação do Bastos.
Volto a mirar a foto. Noto-lhe um ar de riso, o mesmo que vi em seu rosto ao longo dos anos. Mas ali, somos dois jovens nortistas, tentando a carreira literária no Rio, então capital federal e cultural do país. Mas faltam, na foto, Lucy Teixeira, Décio Victorio, Carlinhos de Oliveira. Faltaria Mário Pedrosa, mas não, que ele já era o grande crítico de arte, por todos respeitado. Podia-se dizer que éramos uma turma de apaixonados pela arte e a literatura, perdidões na capital do país. Que futuro nos esperaria? Não pensávamos nisso.
Oliveira Bastos era paraense e morava em Belém, quando, em 1950, em São Luís, lancei um movimento de vanguarda, intitulado Antiquentismo. Um jornalista paraense entrevistou-me a respeito e levou dois poemas meus, inéditos, "Galo Galo" e "A Galinha", para publicar junto com o manifesto. Contou-me Bastos, quando o conheci, que o manifesto antiquentista fez o maior sucesso em Belém; nos bares, não se falava noutra coisa. E logo surgiram poemas da nova tendência: "O Frango", "O Peru", "O Marreco"... Pois é, os paraenses entenderam que o meu antiquentismo propunha uma poesia de galinheiro...
Não muito mais tarde, fomos morar os três, Bastos, Carlinhos e eu, num quarto da pensão de dona Hortência, na rua Buarque de Macedo, 56. Cantei-o num poema, onde falava de uma pia, que era oráculo e urinol. Quando me deram o emprego de revisor de textos na revista "O Cruzeiro", cansado de dormir naquela cama dura, mudei para um quarto em Copacabana. Certa manhã, ao passar de ônibus pela praia do Flamengo, rumo ao trabalho, não resisti à saudade, desci e fui acordar meus amigos. Tirei os sapatos, calcei os tamancos que ali deixara. De tamancos, segui com eles para o almoço, num restaurante próximo. De lá, nos dirigimos à casa do Décio, que, ao me ver de tamancos, o Bastos com o paletó pelo avesso e Carlinhos de chinelos, aderiu à performance: amarrou uma gravata na cintura e saiu conosco rumo ao Salão Nacional de Arte Moderna, que inaugurava àquela tarde. Ao chegarmos ali, uns riam e outros olhavam com espanto. Milton Dacosta, às gargalhadas, propôs que nós três constituíssemos o novo júri do salão. Dali, seguimos para o Vermelhinho, onde conheci Teresa Aragão, cuja mão pediria, meses depois, à sua mãe, tendo como testemunhas Bastos e Décio, para espanto da família.
Foi Bastos quem me levou para o suplemento dominical do "Jornal do Brasil", recém-criado por Reynaldo Jardim; foi Bastos quem articulou os entendimentos para que o SDJB se tornasse veículo do novo movimento da poesia concreta.
Quando voltei do exílio, insistiu que escrevesse para o "Jornal de Brasília", de que era chefe da Redação. Queria evitar que eu passasse dificuldades. Depois daí, nos vimos poucas vezes, mas sempre como irmãos. Faz alguns meses, me ligou, estava no Rio.
- Gulla, estou com câncer.
- Quero te ver.
Prometeu ligar depois dos exames que viera fazer. Não ligou. Dia 7 último, lembrei-me dele, mas seu telefone mudara. De nada adiantaria, aliás, pois, naquela madrugada mesmo, ele havia morrido num hospital em Brasília. Por isso, fui procurar nas gavetas este retrato em que ainda estamos juntos e jovens.


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