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FERREIRA GULLAR
Retrato do amigo
Éramos uma turma de apaixonados por arte e literatura, perdidões na então capital do país
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O RETRATO , já um tanto apagado, é de 1953. Ali estamos, eu,
ele e Amelinha, passando em
frente ao Passeio Público, no Rio.
Eu, muito magro, visto o meu único
paletó daquela época, marrom, curtido de sol e poeira; ele, já com indícios de calvície, embora tivesse três
anos a menos que eu. Não lembro
para onde íamos naquela tarde nem
de onde vínhamos, mas é a única foto em que aparecemos juntos, mesmo porque nenhum de nós possuía
máquina fotográfica, nem mesmo
um quarto para morar; ele morava
numa vaga e eu mudara recentemente para o apartamento de Amelinha, na rua Fialho, na Glória. Cometera os últimos catastróficos poemas de "A Luta Corporal", que ele
pedira para ler, prometendo escrever um longo ensaio.
Pouco depois, no dia 10 de setembro, completava eu, sem comemoração, 23 anos de idade. Estava, nesse
dia, em casa, quando soa a campainha. Ao abrir a porta, levo um susto.
Tinha diante de mim um homem
grande, de olhos verdes enormes,
em mangas de camisa: Oswald de
Andrade! Como era possível estar à
minha porta o lendário autor de "Serafim Ponte Grande" e "Pau-Brasil"? O homem que escrevera o Manifesto Antropófago? E ele, Oliveira
Bastos, ria de meu susto. O poeta me
trouxe de presente dois livros seus,
com a dedicatória de "seu fã, Oswald". Tudo armação do Bastos.
Volto a mirar a foto. Noto-lhe um
ar de riso, o mesmo que vi em seu
rosto ao longo dos anos. Mas ali, somos dois jovens nortistas, tentando
a carreira literária no Rio, então capital federal e cultural do país. Mas
faltam, na foto, Lucy Teixeira, Décio
Victorio, Carlinhos de Oliveira. Faltaria Mário Pedrosa, mas não, que
ele já era o grande crítico de arte, por
todos respeitado. Podia-se dizer que
éramos uma turma de apaixonados
pela arte e a literatura, perdidões na
capital do país. Que futuro nos esperaria? Não pensávamos nisso.
Oliveira Bastos era paraense e
morava em Belém, quando, em
1950, em São Luís, lancei um movimento de vanguarda, intitulado Antiquentismo. Um jornalista paraense entrevistou-me a respeito e levou
dois poemas meus, inéditos, "Galo
Galo" e "A Galinha", para publicar
junto com o manifesto. Contou-me
Bastos, quando o conheci, que o manifesto antiquentista fez o maior sucesso em Belém; nos bares, não se
falava noutra coisa. E logo surgiram
poemas da nova tendência: "O Frango", "O Peru", "O Marreco"... Pois é,
os paraenses entenderam que o meu
antiquentismo propunha uma poesia de galinheiro...
Não muito mais tarde, fomos morar os três, Bastos, Carlinhos e eu,
num quarto da pensão de dona Hortência, na rua Buarque de Macedo,
56. Cantei-o num poema, onde falava de uma pia, que era oráculo e urinol. Quando me deram o emprego
de revisor de textos na revista "O
Cruzeiro", cansado de dormir naquela cama dura, mudei para um
quarto em Copacabana. Certa manhã, ao passar de ônibus pela praia
do Flamengo, rumo ao trabalho, não
resisti à saudade, desci e fui acordar
meus amigos. Tirei os sapatos, calcei
os tamancos que ali deixara. De tamancos, segui com eles para o almoço, num restaurante próximo. De lá,
nos dirigimos à casa do Décio, que,
ao me ver de tamancos, o Bastos
com o paletó pelo avesso e Carlinhos
de chinelos, aderiu à performance:
amarrou uma gravata na cintura e
saiu conosco rumo ao Salão Nacional de Arte Moderna, que inaugurava àquela tarde. Ao chegarmos ali,
uns riam e outros olhavam com espanto. Milton Dacosta, às gargalhadas, propôs que nós três constituíssemos o novo júri do salão. Dali, seguimos para o Vermelhinho, onde
conheci Teresa Aragão, cuja mão pediria, meses depois, à sua mãe, tendo
como testemunhas Bastos e Décio,
para espanto da família.
Foi Bastos quem me levou para o
suplemento dominical do "Jornal
do Brasil", recém-criado por Reynaldo Jardim; foi Bastos quem articulou os entendimentos para que o
SDJB se tornasse veículo do novo
movimento da poesia concreta.
Quando voltei do exílio, insistiu
que escrevesse para o "Jornal de
Brasília", de que era chefe da Redação. Queria evitar que eu passasse
dificuldades. Depois daí, nos vimos
poucas vezes, mas sempre como irmãos. Faz alguns meses, me ligou,
estava no Rio.
- Gulla, estou com câncer.
- Quero te ver.
Prometeu ligar depois dos exames
que viera fazer. Não ligou. Dia 7 último, lembrei-me dele, mas seu telefone mudara. De nada adiantaria,
aliás, pois, naquela madrugada mesmo, ele havia morrido num hospital
em Brasília. Por isso, fui procurar
nas gavetas este retrato em que ainda estamos juntos e jovens.
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