São Paulo, quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MARCO ANTONIO RODRIGUES

Homens de Papel Revisitados

ESPECIAL PARA A FOLHA

É nas décadas de 1950, 1960, talvez a época mais interessante da vida pública brasileira, que o centro da dramaturgia passa a ser ocupado pelo proletário, sintetizando anúncios da iminência de um país mais justo que já viria. Na contramão desse otimismo progressista, a voz dissonante e anárquica do Plínio Marcos metia na marra a marginália em cena, uma legião sórdida e violenta que afrontava o homem cordial e o paraíso na terra em vias de acontecer.
Plínio é único. Como é que o poeta das putas, dos gigolôs, dos anões de caralho grande, do lixo e do lodo pensaria a degradação das ruas hoje, o apocalipse, o asfalto? Penso na peça sobre os catadores de papelão.
Como é que ela se reescreveria cenicamente hoje, já que, agora, os "Homens de Papel" têm endereço certo? Espalham-se e concentram-se nos baixios do Minhocão, ocupando-o em toda a sua extensão.
De manhã, na contraluz difusa de um sol que passa entre as poucas árvores e a massa de concreto, percebe-se, em primeiro plano, a massa de miseráveis e suas cadeiras de rodas, cachorros, crianças, cobertores, excrementos, pústulas, muletas, restos de comida. Ela se estende ao infinito, acompanhando a linha do viaduto.
Lá no fim, se horizonte houvesse, seria possível perceber, ainda como miniatura, um grupo bem diferente, que se espalha compacta e horizontalmente como o braço transversal do corpo da cruz miserável.
Eles avançam rapidamente, reunindo sempre confrades: policiais vestidos de azul, a força bruta municipal; soldados, esses da milícia estadual; juntados ao pessoal da limpeza e assepsia, constituída por caminhões que recolhem os lixos e pertences pessoais dos miseráveis. Há ainda os potentes jatos de água que limpam a rua dos dejetos -sem esquecer os materiais de desinfecção.
Então, a milícia avança sem resistência; os homens de papel de ontem não têm forças de combate, sequer de organização. Silenciosamente, desocupam o baixo do viaduto, colocando-se nas duas margens da avenida. Aguardam pacientemente o término da operação para reocupar o seu não lugar.
É claro que há incidentes: vez por outra, uma menina é atropelada por um ônibus, mas a mãe mal percebe pois o crack já lhe comeu cérebro e vontade.
A revolta e a rebeldia do texto original sustentada pela personagem da mãe na defesa de sua cria foram substituídas por uma entorpecente pacificação.
Por isso, a cena única e breve.
Há alguma semelhança entre esses otimismos delirantes de hoje e de 50 anos atrás.


MARCO ANTONIO RODRIGUES é diretor de teatro; assinou montagens de "O Assassinato do Anão do Caralho Grande" e "Querô", ambas de Plínio, e fez parte, como ator, do Bando, grupo animado pelo dramaturgo nos anos 80

Texto Anterior: Mário Bortolotto: Navalha na Carne 2009
Próximo Texto: Marco Ricca: Dois Perdidos Numa Noite Não Tão Suja do Municipal
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.