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MARCO ANTONIO RODRIGUES
Homens de Papel Revisitados
ESPECIAL PARA A FOLHA
É nas décadas de 1950, 1960,
talvez a época mais interessante da vida pública brasileira,
que o centro da dramaturgia
passa a ser ocupado pelo proletário, sintetizando anúncios da
iminência de um país mais justo que já viria. Na contramão
desse otimismo progressista, a
voz dissonante e anárquica do
Plínio Marcos metia na marra a
marginália em cena, uma legião
sórdida e violenta que afrontava o homem cordial e o paraíso
na terra em vias de acontecer.
Plínio é único. Como é que o
poeta das putas, dos gigolôs,
dos anões de caralho grande, do
lixo e do lodo pensaria a degradação das ruas hoje, o apocalipse, o asfalto? Penso na peça sobre os catadores de papelão.
Como é que ela se reescreveria cenicamente hoje, já que,
agora, os "Homens de Papel"
têm endereço certo? Espalham-se e concentram-se nos
baixios do Minhocão, ocupando-o em toda a sua extensão.
De manhã, na contraluz difusa de um sol que passa entre as
poucas árvores e a massa de
concreto, percebe-se, em primeiro plano, a massa de miseráveis e suas cadeiras de rodas,
cachorros, crianças, cobertores, excrementos, pústulas,
muletas, restos de comida. Ela
se estende ao infinito, acompanhando a linha do viaduto.
Lá no fim, se horizonte houvesse, seria possível perceber,
ainda como miniatura, um grupo bem diferente, que se espalha compacta e horizontalmente como o braço transversal do
corpo da cruz miserável.
Eles avançam rapidamente,
reunindo sempre confrades:
policiais vestidos de azul, a força bruta municipal; soldados,
esses da milícia estadual; juntados ao pessoal da limpeza e assepsia, constituída por caminhões que recolhem os lixos e
pertences pessoais dos miseráveis. Há ainda os potentes jatos
de água que limpam a rua dos
dejetos -sem esquecer os materiais de desinfecção.
Então, a milícia avança sem
resistência; os homens de papel
de ontem não têm forças de
combate, sequer de organização. Silenciosamente, desocupam o baixo do viaduto, colocando-se nas duas margens da
avenida. Aguardam pacientemente o término da operação
para reocupar o seu não lugar.
É claro que há incidentes: vez
por outra, uma menina é atropelada por um ônibus, mas a
mãe mal percebe pois o crack já
lhe comeu cérebro e vontade.
A revolta e a rebeldia do texto
original sustentada pela personagem da mãe na defesa de sua
cria foram substituídas por
uma entorpecente pacificação.
Por isso, a cena única e breve.
Há alguma semelhança entre
esses otimismos delirantes de
hoje e de 50 anos atrás.
MARCO ANTONIO RODRIGUES é diretor de
teatro; assinou montagens de "O Assassinato
do Anão do Caralho Grande" e "Querô", ambas
de Plínio, e fez parte, como ator, do Bando, grupo
animado pelo dramaturgo nos anos 80
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