São Paulo, quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MARCO RICCA

Dois Perdidos Numa Noite Não Tão Suja do Municipal

ESPECIAL PARA A FOLHA

Primeiro sinal.
São quase 3.000 pessoas. Reclamaram. Prosa no Teatro Municipal, com lama e corpos sujos. Os funcionários estão de cara virada. Pelo menos a galeria vai gritar por nós, tenho certeza. Vão gritar que não estão escutando, isso sim.
Lembra da gente fazendo o espetáculo nos fundos daquela paróquia na periferia? Gritavam: "Fala mais alto, porra".
Duas mil pessoas rodeando um pequeno tabladinho. No final, até o padre aplaudiu de pé. Vai dar tudo certo. Padres gostam das peças do cara. Acham que ele é abençoado. E usam seus textos como cartilha.
Quer dizer, não só eles. De tempos em tempos, resgatam o sujeito pra dar uma nova leitura pro mundo. Jornalistas, acadêmicos, políticos. Chamam ele de poeta visionário.
Só rindo. Quer dizer, ele rindo, rindo da cara deles. E a gente fazendo esses personagens com esse peso nas costas. Faz parte.
Os ingleses fazem isso com o Shakespeare, mas o inglês morreu há séculos. E o cara tá vivinho. Aqui do nosso lado. Ele parece um fantasma. O fantasma do Hamlet, sabe assim? Me perturbando a ideia. Dizendo que eu não tenho que adiar nada nesta puta desta vida.
Um dia, ele me contou uma pequena fábula dos patos na revoada. Dizia que nós tínhamos que ser que nem eles. Enquanto passamos sobre os confinados, o estrago é imenso. Os confinados se matam lá embaixo, não suportando a liberdade do voo livre dos seus pares. Isso martela minha cabeça direto.
Ele deve estar lá fora, fazendo uma grana com os livros. Será que é melhor a gente bater um pouco o texto? Tá certo, são mais de cem apresentações.
Segundo sinal.
Eu nem aqueci. Passa o conhaque. Tô calmo. Hoje, vindo pra cá, pra esse templo da alta cultura, fiquei pensando que o Paco, em vez de começar tocando a gaita freneticamente pra irritar o Tonho, poderia tocar algo mais melódico. Acho que aí o cara sobe no palco.
Faltam cinco minutos.
Quando a gente poderia imaginar que chegaria aqui? Só mesmo a força do texto do cara.
Pelo menos um, temos que fisgar pelo menos um, como ele diz: "Se um sair tocado, já valeu". Me dá mais um gole desse conhaque.
Terceiro sinal.
Vou começar a tocar antes de a cortina abrir, certo? Hoje, eu vou tocar só pra ele, eu quero fisgá-lo pra sempre. Merda.
Para de tocar essa porra...


MARCO RICCA é ator e diretor; em 1992, participou de uma montagem de "Dois Perdidos numa Noite Suja"; Plínio escreveu para ele a peça "O Homem do Caminho"

Texto Anterior: Marco Antonio Rodrigues: Homens de Papel Revisitados
Próximo Texto: Crítica/"Lula, o Filho do Brasil": Ficção ruim converte vida única em história exemplar
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.