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MARCO RICCA
Dois Perdidos Numa Noite Não Tão Suja do Municipal
ESPECIAL PARA A FOLHA
Primeiro sinal.
São quase 3.000 pessoas. Reclamaram. Prosa no Teatro Municipal, com lama e corpos sujos. Os funcionários estão de cara virada. Pelo menos a galeria vai gritar por nós, tenho certeza. Vão gritar que não estão
escutando, isso sim.
Lembra da gente fazendo o
espetáculo nos fundos daquela
paróquia na periferia? Gritavam: "Fala mais alto, porra".
Duas mil pessoas rodeando um
pequeno tabladinho. No final,
até o padre aplaudiu de pé. Vai
dar tudo certo. Padres gostam
das peças do cara. Acham que
ele é abençoado. E usam seus
textos como cartilha.
Quer dizer, não só eles. De
tempos em tempos, resgatam o
sujeito pra dar uma nova leitura pro mundo. Jornalistas, acadêmicos, políticos. Chamam
ele de poeta visionário.
Só rindo. Quer dizer, ele rindo, rindo da cara deles. E a gente fazendo esses personagens
com esse peso nas costas. Faz parte.
Os ingleses fazem isso com o
Shakespeare, mas o inglês morreu há séculos. E o cara tá vivinho. Aqui do nosso lado. Ele parece um fantasma. O fantasma do Hamlet, sabe assim? Me perturbando a ideia. Dizendo que eu não tenho que adiar nada nesta puta desta vida.
Um dia, ele me contou uma pequena fábula dos patos na revoada. Dizia que nós tínhamos
que ser que nem eles. Enquanto passamos sobre os confinados, o estrago é imenso. Os confinados se matam lá embaixo,
não suportando a liberdade do
voo livre dos seus pares. Isso
martela minha cabeça direto.
Ele deve estar lá fora, fazendo uma grana com os livros. Será que é melhor a gente bater
um pouco o texto? Tá certo, são mais de cem apresentações.
Segundo sinal.
Eu nem aqueci. Passa o conhaque. Tô calmo. Hoje, vindo
pra cá, pra esse templo da alta
cultura, fiquei pensando que o
Paco, em vez de começar tocando a gaita freneticamente pra
irritar o Tonho, poderia tocar
algo mais melódico. Acho que aí
o cara sobe no palco.
Faltam cinco minutos.
Quando a gente poderia imaginar que chegaria aqui? Só
mesmo a força do texto do cara.
Pelo menos um, temos que fisgar pelo menos um, como ele
diz: "Se um sair tocado, já valeu". Me dá mais um gole desse
conhaque.
Terceiro sinal.
Vou começar a tocar antes de
a cortina abrir, certo? Hoje, eu
vou tocar só pra ele, eu quero
fisgá-lo pra sempre. Merda.
Para de tocar essa porra...
MARCO RICCA é ator e diretor; em 1992, participou de uma montagem de "Dois Perdidos numa
Noite Suja"; Plínio escreveu para ele a peça "O
Homem do Caminho"
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