São Paulo, quarta-feira, 19 de dezembro de 2001

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ERUDITO

Natal, presentes, música: sugestões brasileiras

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Chegou o milésimo seiscentésimo sexagésimo quinto Natal! (O primeiro Natal de que se tem registro foi celebrado em 336.) À meia-noite do dia 24, zero hora do dia 25, celebra-se a chegada da luz a esse mundo perpetuamente em trevas. Oxalá, oxalá -se se pode usar, no contexto, uma palavra derivada do árabe. A metáfora, de qualquer modo, vale para qualquer religião; e, luz por luz, por que não a da música? Natal, presentes, música. Eis algumas sugestões brasileiras:

Camargo Guarnieri
De todos os grandes compositores brasileiros, nenhum morreu mais vezes do que Camargo Guarnieri (1907-93). Teve reconhecimento em vida, mas não o suficiente. Sua música foi muito tocada, mas raramente bem. As gravações dividem-se entre as medíocres, as mal gravadas e as inencontráveis. A bibliografia é precária.
Ou dividiam-se; ou eram. Que satisfação ver os "50 Ponteios", lindamente interpretados por Laís de Souza Brasil em discos de 1979, relançados agora num CD duplo. Os ponteios -equivalentes guarnerianos de "prelúdios" (peças curtas, sugerindo improvisos)- estão entre os pontos altos da obra de Guarnieri e só não entram no repertório internacional por desconhecimento. Escritos entre 1931 e 1950 e dedicados cada um a um amigo, concentram o que há de mais íntimo e tocante na voz do mestre de Tietê.
Um grande compositor se revela assim: no tom pessoal que preenche a música desde o primeiro compasso. Contrastado às expansividades de Villa-Lobos, Guarnieri é reservado, melancólico, de uma sofisticação natural e carregada de afeto. Um músico que chega tarde à história, para seu mal e especialmente para seu bem. Os melhores "Ponteios" ficam ombro a ombro com as melhores líricas de Manuel Bandeira (a quem foi dedicado o "Ponteio 44"), como expressão de certo estilo "humilde". "Humilde" entre aspas, erudito e maduro nas suas simplicidades e nos seu arroubos.
As gravações têm essa ressurreição poucos meses depois do lançamento de um compêndio de peso sobre o compositor: "O Tempo e a Música", organizado por Flávio Silva. Literalmente de peso: são dois quilos de livro, 672 páginas em formato grande, reunindo ensaios, fotos, uma preciosa correspondência com Mário de Andrade (bem editada por Flávia Toni, da USP) e o agora imprescindível catálogo geral de composições. O livro estava anunciado desde o centenário de nascimento do compositor, em 1987. Mas 14 anos de atraso não têm tanta importância. Só é pena o próprio Guarnieri não ter recebido essa homenagem antes da última e definitiva morte -antes de se transformar definitiva e absolutamente em música.


50 Ponteios
    
Artista: Camargo Guarnieri
Intérprete: Laís de Souza Brasil, piano
Lançamento: Funarte/EMI (www.lojafunarte.com.br)
Quanto: R$ 20 (duplo), em média



O Tempo e a Música
   
Organização: Flávio Silva
Ensaios: Flávia Toni, Lutero Rodrigues, Ricardo Tacuchian e outros
Lançamento: Funarte/Imprensa Oficial de São Paulo
Quanto: R$ 50, em média



"Violin Music in Brazil"
O título é suspeito, mas, se há uma coisa que não é suspeita, é a afinação do violinista Claudio Cruz. Gravado na Itália, com a participação do pianista (e professor da USP) Nahim Marun, o CD faz justiça, provavelmente pela primeira vez, à "Sonata Nš 1" de Villa-Lobos (1887-1959).
Uma gravação de 1960, com o violinista Oscar Borgerth acompanhado por Ilara Gomes Grosso, foi relançada não faz muito, na coleção Itaú Cultural/Funarte. A comparação entre as duas é instrutiva. Para Borgerth, a "Sonata" parece mais próxima do leste musical da Europa do que das elegâncias francesas que Claudio Cruz traz à tona, sem maneirismos nem condescendências.
O "spalla" da Osesp é um músico direto e fino. Nem todo o repertório do disco, infelizmente, está à altura da sua arte. Henrique Oswald (1852-1931) segue sendo aquele compositor de quem se gostaria de gostar. As "Sonâncias" de Edino Krieger (de 1975), assim como o "Recitativo, Variações e Fuga" de Ronaldo Miranda (de 1980), são música coerentemente do seu tempo, mas que não têm, agora, a urgência que já tiveram. De qualquer modo, as duas "Sonatas" de Villa-Lobos valem o disco. E é bom ver um músico da praça Mauá se arriscando pelo vasto mundo.


Violin Music in Brazil
   
Artistas: Claudio Cruz, violino; Nahim Marun, piano
Lançamento: CD Dynamic (www.dynamic.it)
Quanto: R$ 35, em média



Canções do Brasil
Mais vasto é meu coração. E só um coração minúsculo, e de pedra, não se comove com essa coletânea de músicas cantadas por crianças dos 26 Estados brasileiros, gravadas ao vivo por Sandra Peres e Paulo Tatit. A idéia em si já é tão bonita que chega a dar inveja: um daqueles projetos que todo mundo gostaria de ter feito. Mas a gente não tinha a iniciativa, nem a coragem, nem a alegria dos criadores do selo Palavra Cantada, que há anos vem fazendo música boa para crianças.
Do samba gingado de Pedrinho do Cavaco (dez anos), no Rio, ao Coro de Crianças do Reisado Mirim da Dona Adalgisa, no Sergipe; do "Tatu de Volta no Meio", da cantora e gaiteira gaúcha Luana dos Santos, à incrível Dardete Karitiana, menina índia da Rondônia, o que se vai ouvindo neste disco não são só as vozes limpas e as almas limpas dos cantores, mas a gigantesca, marioandradina alma do Brasil, que aqui, ao menos, vê coincidir imagem e substância.
O espírito de Mário de Andrade abre suas asas silenciosa e inspiradoramente sobre o disco, que vem com anotações de viagem e comentários musicológicos, em linguagem que criança pode ler, além de fotos e desenhos no livro-encarte. Corrigidos uns errinhos de português (nos textos, não nas letras!), deveria ser material obrigatório nas escolas do país.


Palavra Cantada Apresenta Canções do Brasil
    
Produção: Sandra Peres e Paulo Tatit Lançamento: CD Palavra Cantada (www.palavracantada.com.br)
Apoio: Varig/Natura/Nestlé
Quanto: R$ 35, em média



Restauração e Difusão de Partituras
Compositores brasileiros: João de Araújo Silva, Miguel Teodoro Ferreira, Frutuoso de Matos Couto, Manoel Dias de Oliveira. Quatro nomes desconhecidos do século 18; suas partituras se encontram entre as 2.000 que compõem o acervo do Museu da Música em Mariana (MG). Junto aos hoje menos obscuros Lobo de Mesquita (1746?-1805) e José Maurício Nunes Garcia (1767-1830), eles têm obras gravadas pela primeira vez num pacote recém-lançado de três discos, dos nove previstos no Projeto Acervo da Música Brasileira, dirigido por Eleonora Santa Rosa, com coordenação musicológica de Paulo Castagna (da Unesp).
Cada CD reúne obras de acordo com a ordem e o calendário litúrgicos: "Pentecostes" ficou a cargo do Coral de Câmara da Escola de Música da UFMG e uma orquestra de músicos convidados, regidos por Afrânio Lacerda; "Missa", do Coral de Câmara de São Paulo e da Orquestra de Câmara Engenho Barroco, regidos por Naomi Munakata; e "Sábado Santo", do conjunto carioca Calíope, sob a regência de Júlio Moretzsohn.
Restaurar é preciso? Nos dois sentidos da palavra: necessário e exato. Na prática, nossa cultura musical restringe-se ao século 20, precedido de um enorme e misterioso vazio. Qualquer esforço para reinventar o passado merece, portanto, elogios por antecipação. A pergunta difícil vem depois: a música, afinal, vale a pena?
Se a alma não é pequena. Pouca coisa desse repertório tem interesse crucial para além dos motivos históricos, musicológicos, sociológicos, mineirísticos. A música "brasileira" começa bem mais tarde (com Carlos Gomes); e o acervo colonial, pelo que se vê, não contribui tanto assim para nossa experiência do século 18. O que não significa que não seja um acréscimo legítimo ao Museu Imaginário de cada um de nós, que tem seus corredores de fundo, dignos de curadoria.
Chama a atenção, nos discos, a relativa despreocupação com rigores de interpretação da música antiga. Mas, quando se pensa nas condições musicais do Brasil no século 18 e na condição perenemente aglutinadora e metabolizadora da nossa cultura, fica mais fácil desfetichizar a performance e aproveitar sem culpas o tanto de bom que se tem. Os CDs são uma referência e um exemplo do que pode e do que deve ser feito nesse esforço sem fim de salvar o Brasil do Brasil.


Restauração e Difusão de Partituras
   
Obras de: Lobo de Mesquita, José Maurício Nunes Garcia e outros
Regentes: Afrânio Lacerda, Naomi Munakata, Júlio Moretzsohn
Quanto: R$ 65, em média
Patrocinador: Petrobras
Onde comprar: Empório da Música (tel. 0/xx/11/3034-0821)




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