São Paulo, quarta-feira, 19 de dezembro de 2001

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MARCELO COELHO

O "naïf" e a ironia no "bonitinho"

Cada pedacinho de telha, pedregulho do chão, floco de neve ou pistilo de flor é transposto com cuidado para a tela. Cenas rurais -colheita do arroz, casamento na aldeia, pescaria- são reproduzidas em detalhe, como se o quadro não fosse pintado com pincel, mas com uma pinça. As paisagens de Taizi Harada, em exposição no MAC da avenida Paulista até dia 13 de janeiro, dão gosto de ver.
Teixeira Coelho, diretor do Museu de Arte Contemporânea, juntou à mostra de Taizi Harada várias amostras de pintura "naïf" e "primitiva" que constam do acervo do museu: José Antonio da Silva e Manezinho Araújo, por exemplo, aparecem com belos trabalhos.
Belos trabalhos? Ou será que só "bonitinhos"? Ou melhor, bonitos de tão "feinhos" que são? Talvez se possa dizer: querendo ser apenas bonitos, esses quadros se tornam artisticamente interessantes por tudo o que há de feioso nessa boniteza.
Arte "naïf" é um rótulo com certeza pejorativo: um campo de florezinhas amarelas pintado com o cuidado de quem faz uma colcha de retalhos só pode parecer de fato "ingênuo" ou "inculto" depois de todas as revoluções que a arte conheceu durante o século 20.
Os textos e comentários nas paredes da exposição ampliam, contudo, o debate. Certamente, não basta dizer que a denominação de "naïf" esconde forte de dose de preconceito. Muitas vezes defender ausência de preconceitos com relação a alguma coisa é apenas sinônimo de falta de espírito crítico. Mas é sem dúvida uma arma contra o preconceito apontar que José Antonio da Silva, no colorido ácido de suas telas, pode muito bem ser considerado um neofauvista em vez de um simples "primitivo".
Há muito pouco de ingênuo -para bem ou para mal- na arte "naïf". Trata-se de um gênero já plenamente incluído no mercado de arte, tendo seus profissionais e suas próprias galerias especializadas; e nada faz crer que os pintores "naïf" sejam desinformados com relação à arte moderna.
Na própria exposição do MAC, vemos autores fazendo referências à arte de Van Gogh ou dos neoconcretos, para não falar de Miró; e há pelo menos um nítido caso de "releitura" (para usar um termo moderninho) da obra do "Douanier" Rousseau, patriarca dos "naïfs", inspirador de Léger e Picasso.
Claro que há muita coisa de comercial, de facilmente consumível nos "naïfs"; mas há também muita coisa que pode ser vista como um exercício particular e "up-to-date" de ironia.
Tento ver isso nos quadros de Taizi Harada. São bonitos, agradáveis, vendabilíssimos. Mas há outros aspectos que merecem comentário. Tome-se, por exemplo, o detalhismo das paisagens. É uma característica comum a muitos pintores "naïf". Quando pinta um telhado, um varal de roupa, um ramo de árvore, é como se toda a atenção do artista se voltasse para aquele aspecto particular da pintura, como se o quadro inteiro estivesse começando a partir daquele ponto.
O efeito disso sobre o conjunto da pintura se torna paradoxal. Com o objetivo de ser o mais realista possível, o "naïf" acaba produzindo "erros" e mais "erros" de perspectiva; escadas, ruazinhas, paredes parecem despencar da paisagem, como se fossem feitas de papelão. Lembram os cenários do cinema expressionista. E lembram, claro, um dos mais importantes procedimentos da arte moderna: a multiplicação dos pontos de vista, a luta contra as convenções da perspectiva clássica.
A ironia é que, enquanto a arte moderna trazia essas inovações para fazer a crítica da representação, para condenar a idéia do quadro como imitação perfeita da realidade, os "naïfs" fazem perspectiva "torta" e constroem espaços "irrealistas" na medida mesma em que pretendem, ou fingem pretender, a mais exata reprodução do real.
Alguns quadros de Harada (penso numa vista de Santa Tereza e em outra do Central Park de Nova York) duplicam essa ironia. São paisagens concebidas não com base na visão convencional e realista da cena, mas que imitam uma foto daquelas em grande-angular, que arredondam o horizonte. Assim, a técnica em princípio mais realista (a fotografia) é aqui refeita "primitivamente"; e o quadro naïf não dispensa o recurso à câmera.
Precisamente essa relação entre modernidade tecnológica e tradição rural é o tema das pinturas de Harada. Vemos a natureza tomando a tela quase inteira: montanhas enormes no outono, o mar num azul de estampa, as plantações sem fim. Mas, num canto bem pequeno, uma ou duas figuras humanas. Quase não as percebemos à primeira vista. Não se trata apenas de falar da pequenez do homem diante da natureza, num ecologismo, aí sim, ingênuo.
Se olharmos mais um pouco, veremos que um homenzinho está montando uma barraca de camping, que há uma carcaça de carro enferrujada, um posto de gasolina ao longe: o moderno está presente, de forma secundária, nesses quadros.
Como se fosse o moderno -e não a natureza ou a tradição- o objeto quase esquecido, a coisa a ser lembrada e recuperada nostalgicamente. O moderno -tanto na técnica artística quanto nos motivos de cada quadro- é como que o inconsciente dessa pintura.
O "naïf", assim, não me parece deslocado num museu de arte contemporânea. Longe de rejeitar o moderno, de ser uma regressão ao passado, surge assim como uma interpretação, bastante irônica, de suas promessas. Uma forma conciliadora, porque "bonitinha", de ironia, mas ambiguamente "popular" também. Pois, se no século 20 a arte de vanguarda usou o primitivo e o popular como matéria-prima para sua revolução, aqui a arte primitiva e popular é que parece estar usando recursos da vanguarda para seus próprios fins. Se esses fins são meramente comerciais ou não, é um problema que, para mim, resta em aberto.


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