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MARCELO COELHO
O "naïf" e a ironia no "bonitinho"
Cada pedacinho de telha, pedregulho do chão, floco de neve ou pistilo de flor é
transposto com cuidado para a
tela. Cenas rurais -colheita do
arroz, casamento na aldeia, pescaria- são reproduzidas em detalhe, como se o quadro não fosse
pintado com pincel, mas com
uma pinça. As paisagens de Taizi
Harada, em exposição no MAC
da avenida Paulista até dia 13 de
janeiro, dão gosto de ver.
Teixeira Coelho, diretor do Museu de Arte Contemporânea, juntou à mostra de Taizi Harada várias amostras de pintura "naïf" e
"primitiva" que constam do acervo do museu: José Antonio da Silva e Manezinho Araújo, por
exemplo, aparecem com belos
trabalhos.
Belos trabalhos? Ou será que só
"bonitinhos"? Ou melhor, bonitos
de tão "feinhos" que são? Talvez
se possa dizer: querendo ser apenas bonitos, esses quadros se tornam artisticamente interessantes
por tudo o que há de feioso nessa
boniteza.
Arte "naïf" é um rótulo com certeza pejorativo: um campo de florezinhas amarelas pintado com o
cuidado de quem faz uma colcha
de retalhos só pode parecer de fato "ingênuo" ou "inculto" depois
de todas as revoluções que a arte
conheceu durante o século 20.
Os textos e comentários nas paredes da exposição ampliam, contudo, o debate. Certamente, não
basta dizer que a denominação
de "naïf" esconde forte de dose de
preconceito. Muitas vezes defender ausência de preconceitos com
relação a alguma coisa é apenas
sinônimo de falta de espírito crítico. Mas é sem dúvida uma arma
contra o preconceito apontar que
José Antonio da Silva, no colorido
ácido de suas telas, pode muito
bem ser considerado um neofauvista em vez de um simples "primitivo".
Há muito pouco de ingênuo
-para bem ou para mal- na
arte "naïf". Trata-se de um gênero já plenamente incluído no
mercado de arte, tendo seus profissionais e suas próprias galerias
especializadas; e nada faz crer
que os pintores "naïf" sejam desinformados com relação à arte
moderna.
Na própria exposição do MAC,
vemos autores fazendo referências à arte de Van Gogh ou dos
neoconcretos, para não falar de
Miró; e há pelo menos um nítido
caso de "releitura" (para usar um
termo moderninho) da obra do
"Douanier" Rousseau, patriarca
dos "naïfs", inspirador de Léger e
Picasso.
Claro que há muita coisa de comercial, de facilmente consumível nos "naïfs"; mas há também
muita coisa que pode ser vista como um exercício particular e "up-to-date" de ironia.
Tento ver isso nos quadros de
Taizi Harada. São bonitos, agradáveis, vendabilíssimos. Mas há
outros aspectos que merecem comentário. Tome-se, por exemplo,
o detalhismo das paisagens. É
uma característica comum a
muitos pintores "naïf". Quando
pinta um telhado, um varal de
roupa, um ramo de árvore, é como se toda a atenção do artista se
voltasse para aquele aspecto particular da pintura, como se o quadro inteiro estivesse começando a
partir daquele ponto.
O efeito disso sobre o conjunto
da pintura se torna paradoxal.
Com o objetivo de ser o mais realista possível, o "naïf" acaba produzindo "erros" e mais "erros" de
perspectiva; escadas, ruazinhas,
paredes parecem despencar da
paisagem, como se fossem feitas
de papelão. Lembram os cenários
do cinema expressionista. E lembram, claro, um dos mais importantes procedimentos da arte moderna: a multiplicação dos pontos
de vista, a luta contra as convenções da perspectiva clássica.
A ironia é que, enquanto a arte
moderna trazia essas inovações
para fazer a crítica da representação, para condenar a idéia do
quadro como imitação perfeita
da realidade, os "naïfs" fazem
perspectiva "torta" e constroem
espaços "irrealistas" na medida
mesma em que pretendem, ou
fingem pretender, a mais exata
reprodução do real.
Alguns quadros de Harada
(penso numa vista de Santa Tereza e em outra do Central Park de
Nova York) duplicam essa ironia.
São paisagens concebidas não
com base na visão convencional e
realista da cena, mas que imitam
uma foto daquelas em grande-angular, que arredondam o horizonte. Assim, a técnica em princípio mais realista (a fotografia) é
aqui refeita "primitivamente"; e o
quadro naïf não dispensa o recurso à câmera.
Precisamente essa relação entre
modernidade tecnológica e tradição rural é o tema das pinturas de
Harada. Vemos a natureza tomando a tela quase inteira: montanhas enormes no outono, o mar
num azul de estampa, as plantações sem fim. Mas, num canto
bem pequeno, uma ou duas figuras humanas. Quase não as percebemos à primeira vista. Não se
trata apenas de falar da pequenez
do homem diante da natureza,
num ecologismo, aí sim, ingênuo.
Se olharmos mais um pouco, veremos que um homenzinho está
montando uma barraca de camping, que há uma carcaça de carro enferrujada, um posto de gasolina ao longe: o moderno está presente, de forma secundária, nesses
quadros.
Como se fosse o moderno -e
não a natureza ou a tradição- o
objeto quase esquecido, a coisa a
ser lembrada e recuperada nostalgicamente. O moderno -tanto na técnica artística quanto nos
motivos de cada quadro- é como que o inconsciente dessa pintura.
O "naïf", assim, não me parece
deslocado num museu de arte
contemporânea. Longe de rejeitar
o moderno, de ser uma regressão
ao passado, surge assim como
uma interpretação, bastante irônica, de suas promessas. Uma forma conciliadora, porque "bonitinha", de ironia, mas ambiguamente "popular" também. Pois,
se no século 20 a arte de vanguarda usou o primitivo e o popular
como matéria-prima para sua revolução, aqui a arte primitiva e
popular é que parece estar usando recursos da vanguarda para
seus próprios fins. Se esses fins são
meramente comerciais ou não, é
um problema que, para mim, resta em aberto.
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