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FERREIRA GULLAR
Dentro da noite
Guevara sonhou errado, na hora errada, no lugar errado, por acreditar que quem sabe faz a hora
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A PRIMEIRA vez que vi a noite, se
bem me lembro, foi na esquina da rua da Alegria com Afogados, em São Luís. Pode ser que já a
tivesse visto antes, mas não me dera
conta porque, na vida, só conta o que
nos espanta. E foi naquela esquina,
na porta da quitanda de Newton
Ferreira, meu pai, que a noite se revelou a mim, quando ergui os olhos,
inadvertidamente, por cima das platibandas das casas.
A rua da Alegria, para quem não
sabe, começa na avenida Silva Maia
e desce na direção do largo da Cadeia, que esse era então o seu nome,
quando ali situava-se a penitenciária. Nossa casa ficava perto da quitanda, na primeira quadra entre a
avenida e a rua dos Afogados. Foi nela, no quintal dela, que posei para a
única foto em que apareço menino,
junto com alguns de meus irmãos,
irmãs e minha mãe. Como meu pai
não aparece, ele é quem deve ter sido o fotógrafo. Estou ali, sentado numa cadeira, de meias e sapatos, os pés não chegavam a tocar o chão.
Mas até aquele momento, não havia reparado na noite, que só vi de fato, como já contei, ao sair da quitanda e olhar para o céu, que estava cravejado de estrelas a brilhar como se
fosse o rastro de um cometa. Fiquei
deslumbrado e temeroso, pois era
como se uma força estranha quisesse me puxar junto com elas para o
infinito do mundo.
Foi só um instante. Pois logo meu
pai saiu da quitanda, trancou a porta
com chave e tomamos o rumo de casa, onde a família nos esperava para
o jantar. Depois de comer, ouvimos
um programa da rádio Nacional
com Vicente Celestino, e então fui
para minha rede, armada junto à janela que dava para a rua. Mas não resisti: abri a janela, deixei que o clarão
da Via Láctea dourasse meu rosto e
saí voando.
Isso foi em 1938, quando mal completara oito anos de idade. No dia seguinte, pela manhã, estava normalmente observando Bizuza, na cozinha, a socar farinha de mesa com camarão e gergelim torrado para o cuxá. Não demorou muito para que me
tornasse moleque de rua a vagabundear pela cidade, roubando copos
em botecos e jogando bilhar na zona
do meretrício, na rua da Palma. Mais
tarde, chegariam os soldados ianques para ocupar a base aérea do Tirirical e tomar cerveja no Motobar.
Nessas minhas andanças noturnas pela cidade, tinha plena consciência de que o fazia sob o fulgor da
Via Láctea, que me acompanhava
pelos becos e ladeiras, por onde vagava sem saber o que viera fazer no
mundo.
Mas foi durante umas férias no sítio de tio Felinto que pude perceber
o silêncio infinito da noite cósmica,
que de tão intenso me deixava ouvir
até o rumor da grama crescendo sob
meu corpo, ali recostado junto ao
curral. Entendi que a noite não era
apenas estrelas no céu, mas também
o abafado vozerio dos vegetais, que
não falam nem brilham, mas pulsam
na escuridão que lhes oculta as cores
como o zumbido dos pequeninos bichos a trafegarem nos ramos.
A escuridão é o estado natural do
mundo, e a luz é pouca, ainda que as
galáxias sejam feitas de matéria luminosa e incandescente a explodir
no vazio do espaço sem que se ouça.
E dali, onde estava, junto ao curral, no Maranhão, nada se ouvia daquelas explosões de gases e matéria
estelar. No escuro da noite provinciana, só em minha boca se mantinha algum possível lume a se acender na saliva, entre os dentes, uma
palavra qualquer que iluminasse a
existência.
É que a fala nega a noite e dá sentido a nossa presença no planeta.
Mais tarde, bem mais tarde, descobriria que a noite é muito mais veloz nos trópicos do que nas zonas
temperadas. Nos pólos, então, a noite quase não passa, dura meses. Mas
a noite custa a passar também nos
cárceres. Já imaginou quanto deve
demorar a noite, nas selvas colombianas, para as pessoas que as Farc
mantêm seqüestradas? Para quem
teve roubado seu futuro, a noite se
prolonga dia adentro e emenda com
a seguinte, é a noite sem aurora.
Que diferença daquela noite boliviana, nos anos 60, quando Guevara
punha em risco sua vida por um sonho: o sonho de criar uma sociedade
fraterna e igualitária nas Américas.
Sonho, que ele sonhou errado, na
hora errada, no lugar errado, por
acreditar que quem sabe faz a hora,
não espera acontecer. Não faz. Esse
voluntarismo juvenil só conduz à
derrota.
É que o homem perdeu o paraíso
pela impaciência, como disse Kafka.
Mas podemos dizer que, pela paciência, quem sabe, ainda poderá recuperá-lo. Paciência que signifique
determinação, persistir na luta, demore o que demorar, paciência que
nos ajude a vencer a noite com todos
os seus fantasmas e pesadelos.
Como se vê, há muitas noites na
noite -o que nos fascina e assusta,
como disse Murilo Mendes, "com
seus abismos azuis".
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