São Paulo, sábado, 20 de fevereiro de 2010

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RODAPÉ LITERÁRIO

Ilusão e verdade


Novo romance do gaúcho Menalton Braff transforma discussão sobre ética em nostalgia da verdade


MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

"A IMPRESSÃO que tenho é a de que um romance não trata, ele é". A frase, dita pelo protagonista de "Moça com Chapéu de Palha", sugere que o novo livro de Menalton Braff é um romance "metalinguístico", em que a linguagem em si mesma é mais importante do que a matéria narrativa, do que aquilo que o livro "trata" ficcionalmente.
Essa impressão é reforçada pelo fato de sua personagem, o jornalista Bruno Vieira, esboçar um texto que coincide com o livro que temos em mãos: no romance de Menalton Braff, o protagonista (que também é o narrador) escreve um romance que é o próprio romance de Menalton Braff -num jogo de espelhos que tem precedentes ilustres na literatura pós-moderna (a começar por "Em Liberdade", de Silviano Santiago, em que o escritor Graciliano Ramos, convertido em personagem, escreve a continuação de suas "Memórias do Cárcere").
Se "Moça com Chapéu de Palha" não é menos que isso (um romance pós-moderno, com tudo o que implica de ilusionismo), certamente é mais do que isso -pois o ilusionismo proposto por Braff está, ironicamente, a serviço da ideia de "verdade", palavra que ricocheteia ao longo de todo o livro.
Bruno é o repórter que descobre um caso de corrupção envolvendo um amigo do dono do jornal em que trabalha -e que entra em conflito com seu editor, para quem os interesses do patrão deveriam prevalecer sobre a missão jornalística. "A verdade me enruga a testa, incômoda. Por isso quero saber: se existe uma definição satisfatória para a verdade" -matuta o narrador diante do cínico relativismo do editor, que pica os papéis da investigação enquanto pontifica: "Não existe a verdade, Bruno. Existem verdades, entende?"
A essas discussões pseudofilosóficas sobre a ética da comunicação se contrapõem cenas idílicas numa chácara em que o narrador contempla a namorada, uma pintora de quadros "impressionistas", entre refeições familiares e diálogos anacrônicos sobre "a pintura do inacabado e do provisório, que mais sugere do que demonstra".
Do episódio de compadrio provinciano (irrisório se comparado ao poder impessoal das corporações globalizadas) até a "nostalgia da simplicidade" do narrador diante da "moça com chapéu de palha" do título, tudo parece meio obsoleto num romance que flagra o abismo bem brasileiro (nada obsoleto, mas incorporado à vida ordinária) entre moral pública e privada.
Tudo, menos a estrutura desse livro de cronologia descontínua, no qual o narrador, acuado pela publicação de suas denúncias, passa a tratar de si como personagem. Nesse sentido, Braff não "trata" de um dilema ético, mas "é" a expressão formal e ficcional do confinamento da verdade.


MOÇA COM CHAPÉU DE PALHA

Autor: Menalton Braff
Editora: Língua Geral
Quanto: R$ 34 (216 págs.)
Avaliação: bom




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