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Carnaval com muito espelho e pouca vergonha
CARLOS HEITOR CONY
do Conselho Editorial
Remando sempre contra a
maré -e sobretudo contra o
calendário- quando o Carnaval se aproxima, entro em
pânico individual. Tinha pavor das caveiras -e como havia caveira naquele tempo!
Fantasia barata, constava de
um lençol e da máscara que se
comprava nas quitandas. Mais
barata até do que a do morcego -uniforme para os meninos pobres que não podiam
sair de mocinho ou legionário
estrangeiro.
Bem verdade que também
me botaram essas fantasias e
em todas me senti desconfortável. Talvez me sentisse melhor
de caveira mesmo, mas tinha
medo de esbarrar num espelho.
Para evitar outras fantasias,
aos dez anos me enfiei numa
batina e durante anos fiquei
livre do problema.
Mas não fiquei livre dos espelhos. Quando saí do seminário, levava na carne a vontade
de desforrar o tempo perdido.
Já era adulto e ninguém me
obrigaria a ser chinês ou legionário estrangeiro, muito menos marinheiro americano,
fantasia que estava na moda,
na base do "anchors away".
Daí que me esqueci dos espelhos. No primeiro Carnaval,
fui com a roupa que usava todos os dias. Depois da batina,
qualquer outra roupa já era
uma fantasia. Arranjei uma
namorada, na realidade arranjei duas. A primeira era colega da faculdade, filha de um
engenheiro, o Carnaval dela
era meio sem graça, num clube
honesto da Tijuca.
A segunda era uma moça liberada para aquele tempo:
morava com uma amiga em
Copacabana, trabalhava numa loja de discos no largo da
Carioca. Conheci-a quando fui
comprar uns prelúdios de Debussy (gravação de Robert
Cassadessus ao piano). Ela
não sabia quem era Debussy, o
gerente quase a demitiu, eu
amenizei a procura e saí da loja levando meus primeiros discos de Gregorio Barrios, uns
cinco de uma vez, fartei-me de
ouvir "Una Mujer" -e foi ao
som dessa música que começamos a relação.
Bem, veio o Carnaval e recebi
convites para os bailes do High
Life, que eram o vestibular do
inferno, o triunfo da bandalheira, diziam que ali valia tudo e às vezes valia mesmo.
Adoeci para não ter de ir ao
baile comportado do Tijuca,
vigiado pela família e pelos fiscais de salão. No High Life não
havia nem famílias nem fiscais. Mas havia espelhos.
Não se podia dançar nem pular. A folia resumia-se num
cordão único que dava voltas
pelos salões. Era monótono,
mas dava para aquilo que então se dizia "poucas-vergonhas". Agarrado na minha namorada -que veio com fantasia adrede, de grega falsificada, as coxas nuas, os seios mal
tapados pela túnica- ,entrei
no cordão ao som do sucesso
do ano, "o general da banda
que chegou/ catuca por baixo
que ele cai"- a letra me parecia incompreensível, mas o ritmo era sensual, diabólico,
mais tarde me informaram
que servia de ponto nas macumbas.
Meia hora depois, eu estava
calibrado, espremido pelos outros e espremendo minha grega
que se deixava espremer e se
não deixasse dava no mesmo,
era o famoso, o condenável, o
obsceno "vale tudo" do High
Life.
O cordão quase não andava,
todos se mexiam mais para os
lados, em torno das parceiras.
De maneira que eu estava gostando, gostando até demais,
quando reparei num sujeito
mal encarado que me observava. Estava à minha frente, ainda distante, volta e meia desaparecia no meio dos outros,
mas sempre que aparecia me
olhava fundamente, com reprovação e nojo.
Meia hora depois, eu continuava mais ou menos no mesmo lugar, com a grega untada
de suor e eu cismado com
aquele cara que não tirava os
olhos de mim. O salão não era
muito iluminado, comecei a
desconfiar que conhecia aquele camarada que sumia no
meio de outros foliões e quando reaparecia continuava a me
olhar com severidade, me condenando.
Forcei a barra e tentei me
aproximar dele. Estava ainda
longe, e, curiosamente, notei
que ele também procurava se
aproximar. Aos poucos, fui reparando quão sórdida era sua
face, seus olhos imundos, o
suor repugnante que escorria
de sua testa hedionda. Em todo o caso -e só percebi isso
quando estava bem mais próximo- ele soubera se arranjar, à frente dele havia uma
grega quase nua que se esfregava nele com fúria, uma grega igual à minha.
Olhei bem. Aquela cara idiota também me olhava. Olhava-me e me desafiava. Era para tomar satisfações. Avancei
com resolução e fiquei diante
de um espelho que ia do chão
ao teto: eu estava diante de
mim mesmo como nunca estivera antes e nunca estaria depois.
Meu Carnaval acabou ali.
Não apenas o meu Carnaval,
mas toda a alegria folgazã que
nunca mais repeti. Tornei-me
um homem de poucos risos.
Volta e meia, o Marcelo Coelho reclama que sou rabugento. Sou mesmo e tenho motivos
para o ser (ou sê-lo -o leitor
escolha a forma que lhe convier).
Isso não quer dizer que resultei num homem sério, digno de
confiança dos pais de família
-isso existia naquele tempo.
Substituí a grega por uma mineira, a mineira por uma paulista, a paulista por uma carioca -enfim, continuei no cordão, mas evitando os espelhos,
como naqueles versos de Orestes Barbosa: "Para não ver nos
espelhos meus olhos muito vermelhos de tanto, tanto chorar".
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