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ARTES GRÁFICAS
Criatividade vence guerra em Sarajevo
CELSO FIORAVANTE
enviado especial a Sarajevo
As artes gráficas tiveram um papel importante durante os quatro
anos em que Sarajevo se viu assediada pelas tropas sérvias. Entre
1992 e 1995, além da guerra bélica,
travou-se uma guerra de comunicação, em que os bósnios tentaram, por meio das mais diversas
mídias, conscientizar seus vizinhos europeus e o mundo do genocídio de que estavam sendo vítimas.
Geralmente com poucos recursos, por vezes apenas papel reciclado e uma cor de tinta, os artistas gráficos locais desenvolveram
trabalhos de informação e denúncia. Dois grupos, atuantes em vertentes opostas, se destacaram e
conseguiram atravessar o cerco
sérvio e as fronteiras de seu próprio país para ganhar destaque
mundial: Grupo Fama e Trio Sarajevo.
O primeiro ficou conhecido por
dois trabalhos: "Sarajevo Survival
Guide" e "Sarajevo Survival Map".
O guia foi distribuído internacionalmente e dava informações básicas sobre as condições em que a
cidade sitiada se encontrava, em
tópicos como água, energia elétrica, tabaco, transportes e compras
(tudo com muita ironia e o uso da
mais alta tecnologia disponível
nas artes gráficas).
O mapa servia para aqueles que
estavam já no fogo cruzado, pois,
além dos prédios históricos bombardeados, mostrava até onde o
cerco sérvio havia chegado (leia
texto sobre o Grupo Fama abaixo).
O Trio Sarajevo criou, a partir de
1993, cartões postais que logo se
tornaram manifestos de indignação, algo irônicos e melancólicos,
em que retrabalharam imagens
bombardeadas pela cultura de
massa, como logotipos de Coca-Cola e vodca Absolut, cartazes
de filmes clássicos e obras de arte,
como de Roy Lichtenstein e Andy
Warhol.
Um deles, com a imagem de Evita Peron, foi criado em parceria
com a intelectual norte-americana
Susan Sontag, que foi a Sarajevo
para viabilizar uma montagem da
peça "Esperando Godot". No cartão da vodca Absolut, a receita da
bebida que consta no rótulo foi
substituída por uma "receita" de
como é feito o povo de Sarajevo.
O trio atualmente é um duo, já
que seu terceiro membro, Leila
Hatt, estava em Zurich quando a
guerra estourou e não voltou para
Sarajevo. O casal Bojan e Dalida
Hadzihalilovic mantém o nome e
trabalha em uma agência de publicidade e marketing chamada Fabrika e desenvolve projetos editoriais. Bojan também é professor de
artes gráficas na Academia de Belas Artes.
"Durante a guerra, você também pode escolher um caminho,
como em 'Trainspotting'. Escolhemos Sarajevo, nossa família e
nossos amigos. Poderíamos tentar
sair, mas vivemos apenas uma vez
na vida e devemos saber o que
queremos", disse Bojan Hadzihalilovic em entrevista à Folha.
Atualmente, uma de suas tarefas
é conseguir verba para mandar
dez de seus alunos para uma semana de estudos em Londres, ainda hoje uma missão quase impossível em Sarajevo.
O grupo foi criado em 1985. Seus
primeiros trabalhos foram capas
de discos para os mais importantes grupos de rock da ex-Iugoslávia, como o Blue Orkestar. "Chegamos a trabalhar com mais de 30
grupos de rock. Trabalhamos ainda para peças de teatro e revistas
de Sarajevo e de várias cidades da
Iugoslávia", disse Bojan.
A ex-Iugoslávia sempre se destacou nas artes gráficas. Muitos dos
artistas plásticos de Sarajevo ganham a vida com trabalhos na
área. Liubliana, capital da Eslovênia realiza ainda hoje uma importante bienal do setor.
"Sempre existiu uma boa energia
criativa nos Balcãs, mesmo sem
termos acesso às mais altas tecnologias. O mundo sempre estava
dez anos na nossa frente no quesito tecnologia e isso só se agravou
com a guerra", disse Bojan.
Apesar de estar sitiado em uma
área que não ultrapassava três quilômetros ao longo do rio Miljacka,
o Trio Sarajevo não parou de trabalhar. "Fazíamos qualquer trabalho em que entrasse o design gráfico. Em 1992, trabalhamos para os
jogos olímpicos de Barcelona, onde nosso novo país, a Bósnia-Herzegóvina, se apresentou pela primeira vez. Fizemos o uniforme,
com os lírios de nossa bandeira.
Mandamos o desenho por fax para
a Itália, onde eles foram confeccionados", disse Bojan.
Nem sempre, porém, o trabalho
foi tão glamouroso. Na maioria
das vezes, aliás, o trabalho se desenvolvia baseado em relações comerciais medievais.
"Fazíamos o desenho para uma
marca de cigarros e ganhávamos
cem maços da fábrica de tabaco.
Trocávamos os cigarros por papel,
onde imprimíamos postais que
trocávamos por madeira. Isso já
aconteceu ao longo da história,
mas o trágico era que estava acontecendo com 500 mil pessoas e no
meio da Europa. E ninguém se importava com isso", disse Bojan.
"Não era muito importante receber pelos trabalhos, pois você
não podia comprar absolutamente
nada", complementou Dalida
Os anos de guerra, porém, segundo o Trio Sarajevo, podem ser
vistos com olhos positivos.
"Os jovens perderam os melhores anos de suas vidas com a guerra, mas também podemos sentir
que existe uma energia muito positiva. Eles querem recuperar o
tempo perdido. A guerra foi uma
experiência horrível, mas também
fez com que não nos tornássemos
mais uma chata cidade européia
do Ocidente. Estamos muito felizes porque nossa cidade está brilhando novamente", disse Bojan.
Trio Sarajevo: B. Flurdeva, 4, Sarajevo, tel. 00
387 71 200-762, fax 00 387 71 665-146. Email:
dalida@trio-sa.org.ba
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