São Paulo, sexta, 20 de fevereiro de 1998

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ARTES GRÁFICAS
Criatividade vence guerra em Sarajevo

CELSO FIORAVANTE
enviado especial a Sarajevo

As artes gráficas tiveram um papel importante durante os quatro anos em que Sarajevo se viu assediada pelas tropas sérvias. Entre 1992 e 1995, além da guerra bélica, travou-se uma guerra de comunicação, em que os bósnios tentaram, por meio das mais diversas mídias, conscientizar seus vizinhos europeus e o mundo do genocídio de que estavam sendo vítimas.
Geralmente com poucos recursos, por vezes apenas papel reciclado e uma cor de tinta, os artistas gráficos locais desenvolveram trabalhos de informação e denúncia. Dois grupos, atuantes em vertentes opostas, se destacaram e conseguiram atravessar o cerco sérvio e as fronteiras de seu próprio país para ganhar destaque mundial: Grupo Fama e Trio Sarajevo.
O primeiro ficou conhecido por dois trabalhos: "Sarajevo Survival Guide" e "Sarajevo Survival Map". O guia foi distribuído internacionalmente e dava informações básicas sobre as condições em que a cidade sitiada se encontrava, em tópicos como água, energia elétrica, tabaco, transportes e compras (tudo com muita ironia e o uso da mais alta tecnologia disponível nas artes gráficas).
O mapa servia para aqueles que estavam já no fogo cruzado, pois, além dos prédios históricos bombardeados, mostrava até onde o cerco sérvio havia chegado (leia texto sobre o Grupo Fama abaixo).
O Trio Sarajevo criou, a partir de 1993, cartões postais que logo se tornaram manifestos de indignação, algo irônicos e melancólicos, em que retrabalharam imagens bombardeadas pela cultura de massa, como logotipos de Coca-Cola e vodca Absolut, cartazes de filmes clássicos e obras de arte, como de Roy Lichtenstein e Andy Warhol.
Um deles, com a imagem de Evita Peron, foi criado em parceria com a intelectual norte-americana Susan Sontag, que foi a Sarajevo para viabilizar uma montagem da peça "Esperando Godot". No cartão da vodca Absolut, a receita da bebida que consta no rótulo foi substituída por uma "receita" de como é feito o povo de Sarajevo.
O trio atualmente é um duo, já que seu terceiro membro, Leila Hatt, estava em Zurich quando a guerra estourou e não voltou para Sarajevo. O casal Bojan e Dalida Hadzihalilovic mantém o nome e trabalha em uma agência de publicidade e marketing chamada Fabrika e desenvolve projetos editoriais. Bojan também é professor de artes gráficas na Academia de Belas Artes.
"Durante a guerra, você também pode escolher um caminho, como em 'Trainspotting'. Escolhemos Sarajevo, nossa família e nossos amigos. Poderíamos tentar sair, mas vivemos apenas uma vez na vida e devemos saber o que queremos", disse Bojan Hadzihalilovic em entrevista à Folha.
Atualmente, uma de suas tarefas é conseguir verba para mandar dez de seus alunos para uma semana de estudos em Londres, ainda hoje uma missão quase impossível em Sarajevo.
O grupo foi criado em 1985. Seus primeiros trabalhos foram capas de discos para os mais importantes grupos de rock da ex-Iugoslávia, como o Blue Orkestar. "Chegamos a trabalhar com mais de 30 grupos de rock. Trabalhamos ainda para peças de teatro e revistas de Sarajevo e de várias cidades da Iugoslávia", disse Bojan.
A ex-Iugoslávia sempre se destacou nas artes gráficas. Muitos dos artistas plásticos de Sarajevo ganham a vida com trabalhos na área. Liubliana, capital da Eslovênia realiza ainda hoje uma importante bienal do setor.
"Sempre existiu uma boa energia criativa nos Balcãs, mesmo sem termos acesso às mais altas tecnologias. O mundo sempre estava dez anos na nossa frente no quesito tecnologia e isso só se agravou com a guerra", disse Bojan.
Apesar de estar sitiado em uma área que não ultrapassava três quilômetros ao longo do rio Miljacka, o Trio Sarajevo não parou de trabalhar. "Fazíamos qualquer trabalho em que entrasse o design gráfico. Em 1992, trabalhamos para os jogos olímpicos de Barcelona, onde nosso novo país, a Bósnia-Herzegóvina, se apresentou pela primeira vez. Fizemos o uniforme, com os lírios de nossa bandeira. Mandamos o desenho por fax para a Itália, onde eles foram confeccionados", disse Bojan.
Nem sempre, porém, o trabalho foi tão glamouroso. Na maioria das vezes, aliás, o trabalho se desenvolvia baseado em relações comerciais medievais.
"Fazíamos o desenho para uma marca de cigarros e ganhávamos cem maços da fábrica de tabaco. Trocávamos os cigarros por papel, onde imprimíamos postais que trocávamos por madeira. Isso já aconteceu ao longo da história, mas o trágico era que estava acontecendo com 500 mil pessoas e no meio da Europa. E ninguém se importava com isso", disse Bojan.
"Não era muito importante receber pelos trabalhos, pois você não podia comprar absolutamente nada", complementou Dalida
Os anos de guerra, porém, segundo o Trio Sarajevo, podem ser vistos com olhos positivos.
"Os jovens perderam os melhores anos de suas vidas com a guerra, mas também podemos sentir que existe uma energia muito positiva. Eles querem recuperar o tempo perdido. A guerra foi uma experiência horrível, mas também fez com que não nos tornássemos mais uma chata cidade européia do Ocidente. Estamos muito felizes porque nossa cidade está brilhando novamente", disse Bojan.


Trio Sarajevo: B. Flurdeva, 4, Sarajevo, tel. 00 387 71 200-762, fax 00 387 71 665-146. Email: dalida@trio-sa.org.ba


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