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CONTARDO CALLIGARIS
Outsider
Tempos atrás, um de nossos
filhos pediu que o aniversário de seus dez anos fosse celebrado com uma festa dançante. Os meninos ficaram num canto batendo papo, e as meninas, no canto oposto, dançando, às vezes, mas entre si. No entanto, no fim
da tarde, os dois grupos se aproximaram. Formaram-se alguns pares que se aventuraram nos agitos do rock e, logo, seríssimos, se enlaçaram nas lentas. Tudo isso com uma certa vergonha e muita distância recíproca.
Nem todo mundo entrou no baile. Outros convidados ficaram
brincando de esconde-esconde.
Alguns meninos subiram até uma sacada que dominava o espaço
onde se dançava e começaram a
cuspir. A graça era acertar na cabeça dos dançarinos. Claro, eram
jovens demais para deixar o conforto do clube do Bolinha e sentiam-se excluídos: imaginavam
que, se eles pedissem para dançar,
as meninas ririam de suas caras.
A humilhação prevista era compensada pelo exercício da gozação: são ridículos, cuspa neles.
Acalmei os jovens dissidentes e
cuspidores. Mas sentia uma certa
simpatia por eles: afinal, eles
eram a instância crítica do momento. Manifestavam que, de fato, a festa em curso era uma farsa.
Outra cena: um grupo de adolescentes entra num clube. Alguns
vão direto para a pista, empolgam-se e dançam sem saber com
quem. Outros aproximam-se do
bar e entram em conversas animadas. Mas sempre há alguém
que não se encaixa: fica afastado,
observa e pensa. Excluído por sua
incapacidade de enturmar-se,
eventualmente ressentido, ele
procura conforto no esforço de
sua jovem inteligência. Despreza
a facilidade com a qual os outros
se entregam à frivolidade. Tenta
se lembrar da seriedade trágica
da vida: morte, doença, separações, covardias, miséria, conflitos,
falsa consciência. A crítica é, para
ele, uma maneira de conquistar
um lugar no mundo: não consegue dançar na pista e resolve sua
solidão assumindo a função de
cassandra.
No melhor dos casos, esse jovem
reconhece também que seu exercício crítico é apenas uma compensação narcisista: não sei brincar, mas -olhem para mim-
contemplo de cima a fatuidade
do mundo.
Outra cena ainda: um balneário italiano, no começo dos anos
70. Deito na areia, deixando que
o sol seque a umidade do inverno.
Aproveitando a coincidência pela
qual passávamos as férias no
mesmo lugar, devia encontrar, na
praia, um editor de "Rinascita", a
revista semanal do PCI. A redação tinha aceitado que resenhasse
a tradução italiana dos "Escritos"
de Lacan, e tratava-se de decidir o
ângulo do texto. O editor era reconhecível de longe: saído de um
filme de Fellini, estava sentado
embaixo de um guarda-sol, de
terno escuro, camisa branca, gravata preta, paletó abotoado,
meias e sapatos de couro na areia.
Ele parecia cultivar sua própria
exclusão da praia e do mundo,
como se essa fosse a condição necessária de seu olhar crítico. Na
hora, me perguntei: ele pensa porque é excluído ou é excluído porque pensa?
Estou lendo "Harvard and the
Unabomber, the Education of an
American Terrorist" (Harvard e o
Unabomber, a educação de um
terrorista americano), de Alston
Chase. É uma excelente reconstrução da formação e da época
que produziram o Unabomber, o
ex-professor universitário de matemática que traduziu sua revolta
(banal) contra a tecnologia numa
série de assassinatos. Chase define o clima cultural do drama a
partir de um livro que, no momento de sua publicação, em
1956, foi um best-seller: "O Outsider" de Colin Wilson. Wilson escrevia: "Será que ele é um "outsider" porque é frustrado e neurótico?" ou, então, será que ele é neurótico porque "enxerga mais fundo"?
Não há propriamente contradição entre essas perguntas. Na modernidade, pertencer a um grupo
torna-se um esforço. A comunidade nacional não é uma fatalidade, pois podemos viajar e migrar. A família originária, da
qual somos filhos, longe de ser o
grupo ao qual pertencemos com
certeza, é o grupo contra o qual
afirmamos nossa independência.
A família que, eventualmente, inventamos é fruto de difíceis encontros amorosos. A classe social
depende de nosso sucesso. Em suma, encontrar uma turma é laborioso e incerto. O destino do "outsider", estranho e estrangeiro, é,
para nós todos, quase natural.
Por isso mesmo, talvez, a modernidade seja a época da mais
viva inteligência contestatária.
Quem não se entrosa justifica sua
presença no mundo pela crítica.
Entrar na dança é duvidoso, resta-nos cuspir na cabeça dos que se
mexem segundo um ritmo comum.
Escrevo esta coluna na segunda-feira, dia 17, à noite, em Nova
York. Bush acaba de anunciar o
ultimato de 48 horas. Ontem, desfilaram os pacifistas. Hoje, na televisão, desfilam os guerreadores.
É também o dia de Saint Patrick,
patrono dos irlandeses. Pelas ruas
da cidade, erram músicos das
bandas de gaita de foles que marcharam na Quinta Avenida. De
vez em quando, tocam "Danny
Boy": réquiem e hino. Sentado
numa praça, olho para o céu
atravessado por um helicóptero
da defesa civil. Sinto-me como o
adolescente que, no clube, não
conseguia enturmar-se com ninguém.
ccalligari@uol.com.br
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