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RODAPÉ
Afogamento às avessas
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
Os dois primeiros livros de
Adriana Lisboa, "Os Fios da
Memória" (uma saga familiar) e
"Sinfonia em Branco" (romance
de formação de duas irmãs), foram vistos como sopro renovador
da "literatura feminina". Sua obra
mais recente, "Um Beijo de Colombina", confirma os predicados dos títulos anteriores (uma
escrita delicada, impregnada pelo
ponto de vista intimista). Ao mesmo tempo, ultrapassa o caráter
redutor do rótulo.
A própria estrutura do romance
traz a preocupação em desvincular sensibilidade e condição feminina: o livro é narrado por um homem -no caso, o namorado de
uma escritora que morre afogada
em Mangaratiba (litoral do Rio de
Janeiro). Ele é um anônimo professor de latim; ela (Teresa), uma
romancista que planejava um livro articulado por versos de Manuel Bandeira.
Para compor o relato de sua
perda amorosa, o narrador se
apropria das anotações deixadas
pela escritora nas páginas de uma
surrada edição da poesia de Bandeira: "Um Beijo de Colombina"
é, assim, um romance escrito sobre os esboços de um romance.
Cada um dos capítulos tem o
nome de um poema do escritor,
cujos versos percorrem o livro ora
de maneira explícita, ora assimilados às frases do narrador (ao final
do volume há indicações dos textos que serviram como fonte).
Assim, o protagonista escreve
"num quarto pobre de hotel, ao
lado de um talher" (uma imagem
do poema "Maçã") e diz que, ao
ver Teresa pela primeira vez,
achou que ela tinha pernas estúpidas e que "a cara parecia uma perna" (um rearranjo dos versos de
"Teresa").
Mas essas referências nada têm
de erudito ou de uma intertextualidade cifrada. Mais do que citar o
poeta, Adriana Lisboa parece assimilar sua vocação para "a beleza
das pequenas coisas" e para o lírico tumulto das ruas:
"Eu achava que poderia passar
o resto dos meus dias assim, existindo pequeno, dando aulas de latim enquanto houvesse alunos de
latim, comprando lanche na Padaria Princesinha do Maracanã e
namorando Teresa sem hora
marcada, de tarde, de madrugada, de manhã", diz o narrador.
E, assim como o poeta recifense
desenhou um itinerário sentimental no Rio de Janeiro em que
passou a maior parte da vida, a carioca Adriana Lisboa desentranha
da cidade uma paisagem em tom
menor, composta por becos, detalhes de fachadas, inscrições em
azulejos, balcões de bar, ruas coalhadas de camelôs (bandeirianos
"demiurgos de inutilidades").
O apego ao detalhe ("o amor é
uma flor murcha, um marcador
amarelo de textos, um quadro de
avisos onde se espeta um bilhete,
um peso de papel azul que reproduz o globo terrestre, uma cama
desfeita ao meio-dia e um copo
d'água pela metade") dá corpo a
um sentimento de ausência e luto
vazado em linguagem desinflada.
E a beleza violenta das passagens
eróticas e as descrições da sexualidade masculina (como a cena em
que o narrador se masturba)
mostram uma singular capacidade de ir além do registro pessoal.
Ambigüidade
Ao final de "Um Beijo de Colombina", o andamento da trama
sofre uma reviravolta, revelando
ambigüidades que já estavam sugeridas na bissexualidade de Teresa. Não seria correto surrupiar
ao leitor a surpresa da descoberta.
Basta dizer que a escritora, que
desaparecera no momento de sua
consagração literária, ressurge
numa espécie de "afogamento às
avessas" e que o enredo sofre uma
inversão do ponto de vista narrativo.
A quebra da verossimilhança,
nos últimos capítulos, corre o risco de tornar artificial o lirismo
conquistado nas páginas precedentes, mas tem função precisa:
ao transformar o narrador em
personagem inventado pela escritora rediviva, Adriana Lisboa parece estar fazendo uma expiação
de seu próprio sucesso literário (a
exemplo da premiada Teresa, ela
recebeu em 2001 o Prêmio José
Saramago, por "Sinfonia em
Branco").
Ou seja, em "Um Beijo de Colombina" ela afoga simbolicamente sua identidade pública de
escritora e se refugia num "alter
ego" que, sendo um duplo de Teresa, de Manuel Bandeira e de si
mesma, resgata "a delícia de poder sentir as coisas mais simples".
Um Beijo de Colombina
Autor: Adriana Lisboa
Editora: Rocco
Quanto: R$ 22,50 (140 págs.)
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