São Paulo, sábado, 20 de março de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

RODAPÉ

Afogamento às avessas

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

Os dois primeiros livros de Adriana Lisboa, "Os Fios da Memória" (uma saga familiar) e "Sinfonia em Branco" (romance de formação de duas irmãs), foram vistos como sopro renovador da "literatura feminina". Sua obra mais recente, "Um Beijo de Colombina", confirma os predicados dos títulos anteriores (uma escrita delicada, impregnada pelo ponto de vista intimista). Ao mesmo tempo, ultrapassa o caráter redutor do rótulo.
A própria estrutura do romance traz a preocupação em desvincular sensibilidade e condição feminina: o livro é narrado por um homem -no caso, o namorado de uma escritora que morre afogada em Mangaratiba (litoral do Rio de Janeiro). Ele é um anônimo professor de latim; ela (Teresa), uma romancista que planejava um livro articulado por versos de Manuel Bandeira.
Para compor o relato de sua perda amorosa, o narrador se apropria das anotações deixadas pela escritora nas páginas de uma surrada edição da poesia de Bandeira: "Um Beijo de Colombina" é, assim, um romance escrito sobre os esboços de um romance.
Cada um dos capítulos tem o nome de um poema do escritor, cujos versos percorrem o livro ora de maneira explícita, ora assimilados às frases do narrador (ao final do volume há indicações dos textos que serviram como fonte).
Assim, o protagonista escreve "num quarto pobre de hotel, ao lado de um talher" (uma imagem do poema "Maçã") e diz que, ao ver Teresa pela primeira vez, achou que ela tinha pernas estúpidas e que "a cara parecia uma perna" (um rearranjo dos versos de "Teresa").
Mas essas referências nada têm de erudito ou de uma intertextualidade cifrada. Mais do que citar o poeta, Adriana Lisboa parece assimilar sua vocação para "a beleza das pequenas coisas" e para o lírico tumulto das ruas:
"Eu achava que poderia passar o resto dos meus dias assim, existindo pequeno, dando aulas de latim enquanto houvesse alunos de latim, comprando lanche na Padaria Princesinha do Maracanã e namorando Teresa sem hora marcada, de tarde, de madrugada, de manhã", diz o narrador.
E, assim como o poeta recifense desenhou um itinerário sentimental no Rio de Janeiro em que passou a maior parte da vida, a carioca Adriana Lisboa desentranha da cidade uma paisagem em tom menor, composta por becos, detalhes de fachadas, inscrições em azulejos, balcões de bar, ruas coalhadas de camelôs (bandeirianos "demiurgos de inutilidades").
O apego ao detalhe ("o amor é uma flor murcha, um marcador amarelo de textos, um quadro de avisos onde se espeta um bilhete, um peso de papel azul que reproduz o globo terrestre, uma cama desfeita ao meio-dia e um copo d'água pela metade") dá corpo a um sentimento de ausência e luto vazado em linguagem desinflada. E a beleza violenta das passagens eróticas e as descrições da sexualidade masculina (como a cena em que o narrador se masturba) mostram uma singular capacidade de ir além do registro pessoal.

Ambigüidade
Ao final de "Um Beijo de Colombina", o andamento da trama sofre uma reviravolta, revelando ambigüidades que já estavam sugeridas na bissexualidade de Teresa. Não seria correto surrupiar ao leitor a surpresa da descoberta. Basta dizer que a escritora, que desaparecera no momento de sua consagração literária, ressurge numa espécie de "afogamento às avessas" e que o enredo sofre uma inversão do ponto de vista narrativo.
A quebra da verossimilhança, nos últimos capítulos, corre o risco de tornar artificial o lirismo conquistado nas páginas precedentes, mas tem função precisa: ao transformar o narrador em personagem inventado pela escritora rediviva, Adriana Lisboa parece estar fazendo uma expiação de seu próprio sucesso literário (a exemplo da premiada Teresa, ela recebeu em 2001 o Prêmio José Saramago, por "Sinfonia em Branco").
Ou seja, em "Um Beijo de Colombina" ela afoga simbolicamente sua identidade pública de escritora e se refugia num "alter ego" que, sendo um duplo de Teresa, de Manuel Bandeira e de si mesma, resgata "a delícia de poder sentir as coisas mais simples".


Um Beijo de Colombina
   
Autor: Adriana Lisboa
Editora: Rocco
Quanto: R$ 22,50 (140 págs.)



Texto Anterior: Mônica Bergamo
Próximo Texto: Literatura - Salão do Livro de Paris: França abriga multiplicidade chinesa
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.