São Paulo, sábado, 20 de março de 2004

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LIVRO/LANÇAMENTO

Análise sobre crítica musical no Brasil Império se prejudica por simplismo e aparente pressa

Investigação histórica tropeça na correria

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

Em outubro de 1844, representava-se a ópera "Torquato Tasso", de Donizetti, no Rio de Janeiro. O espetáculo deve ter sido péssimo. Eis o que escrevia um crítico: "A senhora Candiani cantou perfeitamente a ária e o dueto com Tasso no primeiro ato; o resto foi medíocre, o seu canto carece de expressão e vibração (...) o senhor Fiorito não sabia o seu papel, ou compreendeu-o mal (...)". Acresce que nenhum cantor, "nem mesmo o ponto", sabia os recitativos da ópera.
Quanto aos cenários, "nem ao menos aproximaram-se do que exige o autor". Além disso, "o jogo de cena do final do segundo ato foi todo errado". O crítico concluía: "Não temos senão que deplorar a desarmonia da companhia italiana, desarmonia que azeda os espíritos (e) embaraça os espetáculos".
Nada disso impedia o público de apaixonar-se pelas divas da ópera, cindindo-se muitas vezes em torcidas fanáticas: os adeptos de madame Barbieri engalfinhavam-se com os de madame Fasciotti na incipiente imprensa carioca de 1820. Ainda estavam por vir as grandes unanimidades musicais do século 19 brasileiro: a estréia de Carlos Gomes na cena lírica nacional, em 1861; a temporada de concertos de Thalberg, o virtuose rival de Liszt, em 1855; ou a passagem da grande soprano francesa Rosina Stolz pelo país, em 1852.
Machado de Assis, Martins Pena, Gonçalves Dias, José de Alencar: não houve cronista de renome -ou, para empregar o termo da época, "folhetinista", misto de cronista e crítico- que não comentasse as temporadas musicais da corte. Com doses iguais de dedicação e impaciência, o jornalista Luís Antonio Giron pesquisou em dezenas de periódicos -da "Astréa" e do "Beija-Flor" até "A Violeta Fluminense", passando pela "Marmota" e pelo "Correio Mercantil"- a crítica musical no Rio de Janeiro, de 1826 a 1861. Um apêndice de quase 200 páginas do seu livro "Minoridade Crítica" reproduz na íntegra muito dessa produção.

Dissertação de mestrado
É um trabalho respeitável de investigação histórica, que serviu a Giron na elaboração de sua dissertação de mestrado em musicologia na USP. Como livro de análise, contudo, "Minoridade Crítica" se ressente de tantos problemas quanto o espetáculo de Donizetti cuja resenha citávamos acima.
O livro parece ser um daqueles típicos resultados da correria na entrega da tese para a banca examinadora. Encontram-se erros de grafia em diversas línguas, frases truncadas e informações repetidas -por vezes a poucos parágrafos de distância. Ao lado da intrepidez de julgamentos -sem muita argumentação, o autor refere-se ao padre José Maurício como um "mito" nacionalista-, acumulam-se páginas e páginas de paráfrases e resumos do material coligido.
Não falta a clássica introdução, em que, para atender a formalidades acadêmicas, se elabora uma lista de "hipóteses" que o livro irá demonstrar -como a de que "a vida musical do Brasil durante o Primeiro e Segundo Reinado pode ser descrita a partir dos textos analisados" (página 17).
O instrumental teórico, que sempre se exige nessas horas, é dos mais díspares: uma incômoda e felizmente breve discussão da "Estética" de Baumgarten (1714-1762) cede espaço a figuras como o jornalista H. L. Mencken e à intervenção, in extremis, do "conceito de cânone do pensador Harold Bloom".
Também no espírito de uma lição de casa, segue-se uma história da crítica musical em cinco páginas, que não cita Schumann nem Wagner e mal fala de Hanslick, mas discute (o assunto vai e volta nesse começo do livro) a teoria dos afetos de Athanasius Kircher (1601-1680).
Há coisa de 20 anos, Luís Antonio Giron fez escândalo ao publicar, na Ilustrada, uma apreciação duríssima (e verdadeira) de um concerto de Magda Tagliaferro. O artigo levou a que várias personalidades do mundo musical escrevessem um manifesto em favor da grande pianista, já muito combalida pela idade. Um dos que participaram do abaixo-assinado foi o pianista e musicólogo José Eduardo Martins. Na qualidade de orientador da tese de Giron na USP, é o próprio Martins quem hoje assina o prefácio de "Minoridade Crítica". Fala muito em favor da instituição e dos seus professores a acolhida do antigo "enfant terrible". Ótimo pesquisador e crítico, Giron parece, contudo, sufocar nesse ambiente.


MINORIDADE CRÍTICA - A ÓPERA E O TEATRO NOS FOLHETINS DA CORTE. Autor: Luís Antonio Giron. Lançamento: Ediouro/Edusp. Quanto: R$ 49 (415 págs.).


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