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LIVRO/LANÇAMENTO
Análise sobre crítica musical no Brasil Império se prejudica por simplismo e aparente pressa
Investigação histórica tropeça na correria
MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA
Em outubro de 1844, representava-se a ópera "Torquato
Tasso", de Donizetti, no Rio de Janeiro. O espetáculo deve ter sido
péssimo. Eis o que escrevia um
crítico: "A senhora Candiani cantou perfeitamente a ária e o dueto
com Tasso no primeiro ato; o resto foi medíocre, o seu canto carece
de expressão e vibração (...) o senhor Fiorito não sabia o seu papel, ou compreendeu-o mal (...)".
Acresce que nenhum cantor,
"nem mesmo o ponto", sabia os
recitativos da ópera.
Quanto aos cenários, "nem ao
menos aproximaram-se do que
exige o autor". Além disso, "o jogo de cena do final do segundo ato
foi todo errado". O crítico concluía: "Não temos senão que deplorar a desarmonia da companhia italiana, desarmonia que
azeda os espíritos (e) embaraça os
espetáculos".
Nada disso impedia o público
de apaixonar-se pelas divas da
ópera, cindindo-se muitas vezes
em torcidas fanáticas: os adeptos
de madame Barbieri engalfinhavam-se com os de madame Fasciotti na incipiente imprensa carioca de 1820. Ainda estavam por
vir as grandes unanimidades musicais do século 19 brasileiro: a estréia de Carlos Gomes na cena lírica nacional, em 1861; a temporada
de concertos de Thalberg, o virtuose rival de Liszt, em 1855; ou a
passagem da grande soprano
francesa Rosina Stolz pelo país,
em 1852.
Machado de Assis, Martins Pena, Gonçalves Dias, José de Alencar: não houve cronista de renome -ou, para empregar o termo
da época, "folhetinista", misto de
cronista e crítico- que não comentasse as temporadas musicais
da corte. Com doses iguais de dedicação e impaciência, o jornalista Luís Antonio Giron pesquisou
em dezenas de periódicos -da
"Astréa" e do "Beija-Flor" até "A
Violeta Fluminense", passando
pela "Marmota" e pelo "Correio
Mercantil"- a crítica musical no
Rio de Janeiro, de 1826 a 1861. Um
apêndice de quase 200 páginas do
seu livro "Minoridade Crítica" reproduz na íntegra muito dessa
produção.
Dissertação de mestrado
É um trabalho respeitável de investigação histórica, que serviu a
Giron na elaboração de sua dissertação de mestrado em musicologia na USP. Como livro de análise, contudo, "Minoridade Crítica"
se ressente de tantos problemas
quanto o espetáculo de Donizetti
cuja resenha citávamos acima.
O livro parece ser um daqueles
típicos resultados da correria na
entrega da tese para a banca examinadora. Encontram-se erros de
grafia em diversas línguas, frases
truncadas e informações repetidas -por vezes a poucos parágrafos de distância. Ao lado da intrepidez de julgamentos -sem
muita argumentação, o autor refere-se ao padre José Maurício como um "mito" nacionalista-,
acumulam-se páginas e páginas
de paráfrases e resumos do material coligido.
Não falta a clássica introdução,
em que, para atender a formalidades acadêmicas, se elabora uma
lista de "hipóteses" que o livro irá
demonstrar -como a de que "a
vida musical do Brasil durante o
Primeiro e Segundo Reinado pode ser descrita a partir dos textos
analisados" (página 17).
O instrumental teórico, que
sempre se exige nessas horas, é
dos mais díspares: uma incômoda
e felizmente breve discussão da
"Estética" de Baumgarten (1714-1762) cede espaço a figuras como
o jornalista H. L. Mencken e à intervenção, in extremis, do "conceito de cânone do pensador Harold Bloom".
Também no espírito de uma lição de casa, segue-se uma história
da crítica musical em cinco páginas, que não cita Schumann nem
Wagner e mal fala de Hanslick,
mas discute (o assunto vai e volta
nesse começo do livro) a teoria
dos afetos de Athanasius Kircher
(1601-1680).
Há coisa de 20 anos, Luís Antonio Giron fez escândalo ao publicar, na Ilustrada, uma apreciação
duríssima (e verdadeira) de um
concerto de Magda Tagliaferro. O
artigo levou a que várias personalidades do mundo musical escrevessem um manifesto em favor da
grande pianista, já muito combalida pela idade. Um dos que participaram do abaixo-assinado foi o
pianista e musicólogo José Eduardo Martins. Na qualidade de
orientador da tese de Giron na
USP, é o próprio Martins quem
hoje assina o prefácio de "Minoridade Crítica". Fala muito em favor da instituição e dos seus professores a acolhida do antigo "enfant terrible". Ótimo pesquisador
e crítico, Giron parece, contudo,
sufocar nesse ambiente.
MINORIDADE CRÍTICA - A ÓPERA E O
TEATRO NOS FOLHETINS DA CORTE.
Autor: Luís Antonio Giron. Lançamento:
Ediouro/Edusp. Quanto: R$ 49 (415
págs.).
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