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13º FESTIVAL DE CURITIBA
Grupo estréia na Mostra Oficial "Mr. K e os Artistas da Fome", peça co-produzida na Alemanha e baseada em conto do escritor
Boa Cia. interpreta a fome segundo Kafka
VALMIR SANTOS
ENVIADO ESPECIAL A CAMPINAS
Como tratar da arte de passar
fome no país do Fome Zero? A
Boa Companhia de Teatro, com
sede em Campinas (São Paulo),
foi buscar metáforas cênicas na
fonte literária do escritor tcheco
Franz Kafka (1883-1924), mais
precisamente no conto "Um Artista da Fome", que narra em dez
páginas a ascensão e a queda de
um jejuador.
Em cerca de 40 anos (ou dias), a
trajetória do jejuador vai da voracidade popular, visitado dia e noite em sua jaula, curiosamente vigiada por açougueiros; passa pelo
desprezo do povaréu às exibições;
uma frustrante turnê pela Europa;
e chega à decadência do emprego
em um circo, exposto ao lado dos
estábulos.
O ascetismo desse artista raro,
que ao final revelará jamais ter ingerido algo não pela habilidade de
jejuar, que lhe é fácil, mas pela falta de alimento que realmente o
agradasse no mundo, inspira a
Boa Companhia de Teatro na terceira parte de uma trilogia de contos de Kafka transpostos para os
palcos.
"Mr. K e os Artistas da Fome"
foi precedido de "Primus" (1999),
baseado em "Comunicado a uma
Academia" e apresentado no Festival de Curitiba em 2002, primeiro conto escrito por Kafka, e "Josefina, a Cantora ou o Povo dos
Ratos", do texto de mesmo nome
concluído meses antes da morte
do autor.
O novo espetáculo é uma co-produção do festival alemão Arena e.V., dedicado a projetos de
pesquisa de linguagem. A Boa
Cia. apresentou-se lá em 2002,
com "Primus", e foi convidada a
estrear lá sua próxima criação, em
intercâmbio com atores locais. Isso foi no final de 2003.
"Mr. K e os Artistas da Fome"
faz sua estréia nacional hoje, na
Mostra Oficial do Festival de Teatro de Curitiba.
Praça de alimentação
Está programado para um teatro localizado em um shopping. O
prólogo do espetáculo se dá ao ar
livre e, curiosamente, acontecerá
na praça de alimentação.
Para a diretora Verônica Fabrini, a adaptação quer tratar da metáfora do alimento. "Ele em si, externo, depois mastigado e excretado. A aparência, a essência e a
sobra", diz Fabrini. Procura traduzir especialmente os três momentos com cenas fora, dentro e
atrás do teatro.
O ciclo tem a ver com a percepção do tempo. O conto evolui em
quatro décadas. Fica implícita,
pois, a própria passagem da decomposição do corpo.
"A gente costuma ver a fome refletida no corpo da pessoa. Fartura, a gente vê em embalagens.
Quer dizer, em corpos também.
Não é à toa que a obesidade é uma
das doenças mais graves nos Estados Unidos. Às vezes está tão na
cara", diz a encenadora.
Em paralelo, "Mr. K" desenvolve uma antropofagia política do
texto. Kakfa dá de bom grado que
o jejuador é patrocinado por uma
indústria alimentícia. É instantânea a associação com o que é consumido (e descartado) pela indústria cultural nas sociedades
contemporâneas.
Irredutível em seu número pesaroso, o homem esquálido da
jaula dá espasmos de fúria, sacode
a grade como um animal.
O conto "Um Artista da Fome"
foi traduzido e adaptado do alemão por Christine Röhrig.
Escambo
Para Fabrini, a trilogia kafkiana
da Boa Cia. traz à luz "uma profunda compreensão da arte no século 20, do ser artista deslocado
na sociedade".
Serve também à autocrítica da
companhia com sede em Barão
Geraldo, o bairro onde está localizada a Unicamp. Formou-se ali,
nos últimos anos, um nicho de
grupos de pesquisa em trono do
Lume ("Café com Queijo"), o que
não impossibilita a diversidade de
estilos.
"Ali, vivemos na forma do escambo, um grupo ajudando o outro, numa relação de troca que
não passa pelo dinheiro", diz Fabrini, que integra a companhia ao
lado dos atores Alex Caetano, Daves Otani, Eduardo Osório, Isis
Zahara e Moacir Ferraz.
"Mr. K" inaugura parceria da
Boa Companhia com o grupo
campineiro Matula Teatro, que
desde 2000 volta a investigação
cênica para comunidades marginalizadas.
Com elenco predominantemente feminino, o Matula substitui atores internacionais da montagem original (quatro alemães,
um argentino e uma chilena).
O Matula aproveita a viagem a
Curitiba para se apresentar no
Fringe com "Versão Vida Cruel",
texto do grupo e também direção
de Verônica Fabrini. É um espetáculo de rua em que o público é
constantemente convidado pelos
atores a fazer parte de cenas sobre
solidão, amor e fé.
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