São Paulo, terça-feira, 20 de março de 2007

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CECILIA GIANNETTI

Mendigos de estimação


Pode ser uma família inteira, um casal e, às vezes, há ainda o vira-latas de estimação do nosso mendigo de estimação

O RIO de Janeiro continua lançando moda. E o verão passado foi rico em tendências que outras metrópoles hão de adotar. Não me refiro ao Coqueirão na praia, árvore que virou "point" em Ipanema, roubando freqüentadores do badalado Posto Nove para seus arredores. Nem ao iPod embrulhado em camisinha não-lubrificada, para evitar contaminação por areia, água e outras substâncias. Tendência forte mesmo, com boa chance de se espalhar, é a dos mendigos de estimação.
Tudo começou quando proibiram os chuveirinhos nas marquises dos prédios cariocas. Era a onda do verão passado, que sobreviveu até o começo deste ano, quando as autoridades (risos) implicaram com a coisa. Os chamados chuveirinhos eram canos de PVC furados que, grudados às marquises de prédios da zona sul, molhavam a população de rua que tivesse eleito aquele naco de calçada como residência.
Ou seja: quando deitava um mendigo sob um desses prédios, e o sujeito já se ajeitava sobre o papelão para descansar, o porteiro ou alguma síndica (por vezes uma controversa cocoroca, por vezes cidadã realmente alegre, mas com uma quedinha pelo nazi-fascismo) ligava a torneira. E o cano, que cobria, de cima, a calçada inteira, dava banho no pobre.
Pois um dia as autoridades (risos) proibiram o chuveirinho nazista. O carioca, adepto de modismos radicais, logo abraçou outra solução. Abraçou meio a contragosto. Pois a solução fedia: era a vez de adotar mendigos de estimação.
Pode ser uma família inteira, um casal e, às vezes, há ainda o vira-latas de estimação do mendigo de estimação -que também vira latas. O fato é que passou a ser mais vantajoso para os moradores dos predinhos de altos IPTUs manterem sob suas marquises mendigos de confiança.
Se todos os dias -ao sair pela manhã ou chegar "zêbado" durante a madrugada- encontrar na calçada um rosto familiar, a quem já deu um pedaço de pão e até contribuiu com um cobertor velho para quando o inverno chegar, o distinto morador do edifício sente-se, de certa maneira, protegido. Não pode contar com as autoridades (risos) para protegê-lo nem aos mendigos.
É melhor ter ali o mesmo mendigo sempre (seu mendigo de estimação) do que outro qualquer a quem nunca deu pão nem cobertor, com quem não desenvolveu a relação de bom-dia/boa- noite. Cujas intenções desconhece.
Os mendigos de estimação, num acordo silencioso com os moradores que pagam IPTU, passaram até a defecar no canteiro de plantas em frente ao prédio, adubando-o, em vez de fazer na calçada, como na época do chuveirinho, quando viviam com raiva pela maneira como eram tratados.
A realidade se tornou tão grotesca que está destruindo o império do politicamente correto. Por isso uso o termo "mendigos de estimação" sem culpa. São reais. Não há maneira mais real de nomeá-los senão com a alcunha que os aproxima de seus vira-latas fiéis, com quem dormem debaixo das marquises dos prédios.


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