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CINEMA/ESTREIAS
Crítica/"Gran Torino"
Clint revê seus mitos em ótimo drama
Lembrando antigos personagens, ator e diretor faz operário aposentado e racista que entra em conflito com vizinhos orientais
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
Existem dois tempos que
correm paralelos em
"Gran Torino". O primeiro é o tempo do mito. Mito
da América, representado seja
pela bandeira americana içada
na porta da casa de Walt Kowalski, seja no carro Gran Torino que guarda em sua garagem.
O carro é para o velho Walt,
operário aposentado da indústria automobilística, mais que a
própria bandeira. É a sua bandeira: o signo mais evidente de
uma indústria pujante 30 ou 40
anos atrás, quando o carro foi
fabricado. Mas não importa há
quanto tempo ele foi fabricado:
só importa que ele representa a
vitalidade eterna (mítica) do
"made in America".
O outro tempo é miseravelmente real. Trata de um subúrbio de Detroit, empobrecido e
tomado por imigrantes. De um
pai que não consegue se entender com os filhos. De um filho,
pecado dos pecados, que vive
de vender automóveis japoneses! -um completo traidor.
Um tempo é móvel e outro
imóvel. Assim também é Kowalski, em sua duplicidade. Ele
é o vizinho que, em seu chauvinismo radical, não suporta o
contato com os orientais que vieram se instalar ao lado.
Ocorre que, mesmo excluídos os estrangeiros, os sinais de
deterioração da área (e da riqueza industrial automobilística) são evidentes demais para
não chamar a atenção do velho
homem. O bairro está tomado
por gangues, de orientais, negros, latinos, o que for. Gangues
que, simplesmente, representam a barbárie. É aqui que poderá se estabelecer uma curiosa e delicada ponte entre o
chauvinista e os estrangeiros: a
barbárie é universal.
Em um momento, o que Kowalski julga ser também um
abismo etário -ele é um velho
cansado e desiludido do mundo- se mostra abismo ético.
Estamos em terreno familiar
de Clint Eastwood, portanto.
Ainda não sabemos, na verdade
só saberemos no final, as razões
de sua atitude racista, embora o
fato de ter lutado na Guerra da
Coreia não seja alheio a isso.
Apesar de todas as reservas em
relação aos imigrantes, ele é
impelido, por uma espécie de
movimento interior, a tomar o
seu partido contra os adolescentes das gangues. Poderá ser
o início de uma bela amizade.
Personagens marcantes
O fundamental está nesse
movimento interior que anima
Clint e parece unir os dois tempos díspares de sua existência.
Tomemos, primeiro, o personagem: dotado de um mau humor delicioso, que expressa
magnificamente bem seu descompasso com o andamento do
mundo. No jovem e simpático
padre que tenta arrancar-lhe
uma confissão, o velho senhor
nada mais enxerga que um virgem inexperiente.
Diante das gangues, comporta-se mais como o antigo Clint,
o dos faroestes spaghetti. Estranho e animador: vemos desfilar aos nossos olhos vários papéis e tipos marcantes da carreira de Clint, como se fosse
"Gran Torino" súmula deles.
O que não parece, afinal, inexato. Na pele de Kowalski,
Eastwood, o ator, como que
reedita e retrabalha tipos que
marcaram época em outros filmes. Do caubói ao técnico de
boxe, a nostalgia do tempo passado sempre operou como ferramenta moral: as verdades estão no passado; o presente é
uma deterioração da vida. Em
"Gran Torino", o tempo presente, reencontrado, parece desempenhar papel inverso: é ao
futuro que Kowalski fala, seja
como doador de herança, seja
por seus atos finais.
Existe, ainda, a morte: o funeral da mulher de Kowalski
abre o filme. Existirão outras:
no passado e no presente. De
todo modo, a morte é tema tão
central no cinema de Eastwood
que daria para falar só dele.
GRAN TORINO
Produção: EUA/Austrália, 2008
Direção: Clint Eastwood
Com: Clint Eastwood, Bee Vang
Onde: em cartaz nos cines Espaço Unibanco Augusta, Anália Franco e circuito
Classificação: não indicado a menores
de 14 anos
Avaliação: ótimo
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