São Paulo, sexta-feira, 20 de março de 2009

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CINEMA/ESTREIAS

Crítica/"Gran Torino"

Clint revê seus mitos em ótimo drama

Lembrando antigos personagens, ator e diretor faz operário aposentado e racista que entra em conflito com vizinhos orientais

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Existem dois tempos que correm paralelos em "Gran Torino". O primeiro é o tempo do mito. Mito da América, representado seja pela bandeira americana içada na porta da casa de Walt Kowalski, seja no carro Gran Torino que guarda em sua garagem. O carro é para o velho Walt, operário aposentado da indústria automobilística, mais que a própria bandeira. É a sua bandeira: o signo mais evidente de uma indústria pujante 30 ou 40 anos atrás, quando o carro foi fabricado. Mas não importa há quanto tempo ele foi fabricado: só importa que ele representa a vitalidade eterna (mítica) do "made in America".
O outro tempo é miseravelmente real. Trata de um subúrbio de Detroit, empobrecido e tomado por imigrantes. De um pai que não consegue se entender com os filhos. De um filho, pecado dos pecados, que vive de vender automóveis japoneses! -um completo traidor. Um tempo é móvel e outro imóvel. Assim também é Kowalski, em sua duplicidade. Ele é o vizinho que, em seu chauvinismo radical, não suporta o contato com os orientais que vieram se instalar ao lado.
Ocorre que, mesmo excluídos os estrangeiros, os sinais de deterioração da área (e da riqueza industrial automobilística) são evidentes demais para não chamar a atenção do velho homem. O bairro está tomado por gangues, de orientais, negros, latinos, o que for. Gangues que, simplesmente, representam a barbárie. É aqui que poderá se estabelecer uma curiosa e delicada ponte entre o chauvinista e os estrangeiros: a barbárie é universal.
Em um momento, o que Kowalski julga ser também um abismo etário -ele é um velho cansado e desiludido do mundo- se mostra abismo ético. Estamos em terreno familiar de Clint Eastwood, portanto. Ainda não sabemos, na verdade só saberemos no final, as razões de sua atitude racista, embora o fato de ter lutado na Guerra da Coreia não seja alheio a isso.
Apesar de todas as reservas em relação aos imigrantes, ele é impelido, por uma espécie de movimento interior, a tomar o seu partido contra os adolescentes das gangues. Poderá ser o início de uma bela amizade.

Personagens marcantes
O fundamental está nesse movimento interior que anima Clint e parece unir os dois tempos díspares de sua existência. Tomemos, primeiro, o personagem: dotado de um mau humor delicioso, que expressa magnificamente bem seu descompasso com o andamento do mundo. No jovem e simpático padre que tenta arrancar-lhe uma confissão, o velho senhor nada mais enxerga que um virgem inexperiente.
Diante das gangues, comporta-se mais como o antigo Clint, o dos faroestes spaghetti. Estranho e animador: vemos desfilar aos nossos olhos vários papéis e tipos marcantes da carreira de Clint, como se fosse "Gran Torino" súmula deles. O que não parece, afinal, inexato. Na pele de Kowalski, Eastwood, o ator, como que reedita e retrabalha tipos que marcaram época em outros filmes. Do caubói ao técnico de boxe, a nostalgia do tempo passado sempre operou como ferramenta moral: as verdades estão no passado; o presente é uma deterioração da vida. Em "Gran Torino", o tempo presente, reencontrado, parece desempenhar papel inverso: é ao futuro que Kowalski fala, seja como doador de herança, seja por seus atos finais.
Existe, ainda, a morte: o funeral da mulher de Kowalski abre o filme. Existirão outras: no passado e no presente. De todo modo, a morte é tema tão central no cinema de Eastwood que daria para falar só dele.


GRAN TORINO

Produção: EUA/Austrália, 2008
Direção: Clint Eastwood
Com: Clint Eastwood, Bee Vang
Onde: em cartaz nos cines Espaço Unibanco Augusta, Anália Franco e circuito
Classificação: não indicado a menores de 14 anos
Avaliação: ótimo



Texto Anterior: Dança: Cia. Corpos Nômades faz espetáculo gratuito
Próximo Texto: Crítica/"Pagando Bem, que Mal Tem?": Comédia sarcástica fica presa em chavões
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.