São Paulo, Terça-feira, 20 de Abril de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Poderia ser primavera

da Equipe de Articulistas

Bem que poderia ser primavera, como diz a canção de Rodgers e Hammerstein que abre o novo CD de Fred Hersch e Bill Frisell, "Songs We Know". Todas essas "canções que conhecemos", de "Someday My Prince Will Come" a "I Got Rhythm", de "Wave" a "What Is this Thing Called Love?", formam uma primavera do bem-estar, um conforto do coração apaziguado. Piano e guitarra são os instrumentos dessa alquimia, transformando letras irretocáveis no toque passageiro das notas.
Canções são encontros amorosos de palavras e melodias, mas a memória, aqui, tem de suprir tudo o que a música pura não diz. O que ela não supre a melodia escreve mais direto e melhor. Entre o lembrado e o esquecido, as canções vão nos conhecendo, seguindo a trilha das improvisações.
Guitarra e piano não são facilmente compatíveis: tirando Jim Hall e Bill Evans, não há parcerias definitivas dessa combinação. Mas Frisell e Hersch tem um entendimento tão grande que a distância problemática entre os timbres soa como virtude. Em vários momentos ajudados pela gravação muito equilibrada, os dois instrumentos transformam-se num só, "guitano" ou "pianarra", fantasticamente colorido. Ou então um sai de dentro do outro, ou volta para lá, com a aparência de um fato natural, não ensaiado.
Em 1996, Hersch gravou um disco solo de piano, só com canções de Rodgers e Hammerstein, incluindo "It Might as Well Be Spring" ("Fred Hersch Plays Rodgers & Hammerstein"). A diferença entre aquela versão e a nova define o caráter da parceria com Frisell. O que era cheio de síncopes e acentos, sugerindo uma tocata modernista, agora soa calmo e fácil, com a graça nostálgica de uma simples canção americana.
Mesmo os brilhos de autor, como o fá repetido para sempre, por meio das harmonias de "Someday My Prince Will Come", não chegam a chamar a atenção para si. A coincidência perfeita de uma escala aqui, um pedaço de frase ali, em canções como "Softly as in a Morning Sunrise", ou "My One and Only Love", simula acidentes que só um improviso muito bem ensaiado poderia encenar. Em outros casos, como "Blue Monk"", ou "I Got Rhythm", o improviso fica mais próximo ainda da composição, com direito às acrobacias e inteligências que os dois músicos exibem sem modéstia nem pompa.
Bem que poderia ser primavera: uma primavera só de canções de Richard Rogers, Jerome Kern, George Gershwin, Thelonious Monk, Cole Porter. A primavera está lá para sempre, na memória e na música. Refigurada em guitarra e piano, ela é a estação que não existe, em que cada um de nós vai se encontrar ou se perder de novo, nas felicidades e nas verdades de mais uma canção. (AN)


Avaliação:


Disco: Songs We Know
Artistas: Fred Hersch e Bill Frisell
Lançamento: Nonesuch
Quanto: R$ 20, em média



Texto Anterior: Disco - Lançamentos: Bonney canta Strauss de dentro para fora
Próximo Texto: Leitor pode avaliar discos
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.