São Paulo, Terça-feira, 20 de Abril de 1999
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DISCO - LANÇAMENTOS
Bonney canta Strauss de dentro para fora

Divulgação
A soprano Barbara Bonney, que canta em "Quatro Últimas Canções", de Strauss


ARTHUR NESTROVSKI
da Equipe de Articulistas

Pelo menos duas canções são obras-primas e muitas estão entre as melhores que Strauss (1864-1949) escreveu. No conjunto, elas fazem deste novo disco da soprano Barbara Bonney um panorama de vida, que abarca desde o primeiro ciclo, op. 10, de 1885, até as "Quatro Últimas Canções", de 1948, tidas como um dos pontos altos do repertório deste século.
O panorama, no caso, não é só da vida do compositor. Um dos grandes enigmas dessa música é a incongruência entre a pessoa de Strauss, ao que tudo indica, um homem duro, oportunista, politicamente ambíguo, até mesquinho, e as visões que sua arte é capaz de revelar, ou deflagrar, no cenário mais íntimo de cada um de nós.
Também a incongruência histórica, de alguém capaz de escrever canções wagnerianas em plena década da música concreta, se desfaz pela pura força de linhas e acordes. Como dizia o pianista Glenn Gould, a música de Strauss nos obriga a rever a fórmula "novidade = progresso = grande arte". Suas canções não são especialmente novas nem avançam a causa da composição. Mas será que existe outra canção moderna para se pôr ao lado de "Beim Schlafengehen"?
A morte e o sol não se pode olhar de frente, dizia um moralista francês do século 17. Entre as formas enviesadas de confrontar o fim da vida, essas "Quatro Últimas Canções" assumem uma posição exemplar: muito maiores que os versos de Hermann Hesse e do poeta romântico Eichendorff, elas querem dar voz à experiência para além da experiência, uma música falando da outra margem, ou a caminho de lá.
Em "Beim Schlafengehen", em particular, toda a riqueza de elaboração melódica de Strauss ganha conotações humanas sem paralelo na sua obra. Tudo o que, no poema sinfônico "Morte e Transfiguração", ficava bloqueado pelas transfigurações do kitsch, passa por outra espécie de condensação nesses cinco minutos de fulgor calmo, uma vida "profunda e multiplicada" no "círculo mágico da noite".
Cantar Strauss exige uma combinação de lirismo mozartiano e profundezas wagnerianas, que são a marca incomum dessa música. A soprano Barbara Bonney pende mais para Mozart do que para Wagner, o que, para nosso gosto atual, é uma virtude. O resultado traz Strauss mais para perto, também, das canções de Schumann, com quem ele tem mesmo afinidades maiores do que normalmente se aponta, a despeito de estarem em mundos tão diferentes.
Uma cantora como Bonney impressiona menos na audição do que na reaudição, o que, no caso, é sinal de outra virtude: seu cuidado com os detalhes, minúcias de notas e sílabas, em que a música vem se dar de dentro para fora. "De dentro para fora" serviria como descrição, também, do estilo contidamente expansivo do pianista Malcolm Martineau. A maioria dessas canções são peças para voz e piano, não apenas voz com acompanhamento. "Freundliche Vision", de 1900, chamava atenção, na época, exatamente pela independência das partes; mas isso é verdade ainda das oito canções op. 10, que incluem desde composições harmonicamente aventurosas, como "Die Georgine", até os cenários mais teatrais de "Die Nacht".
Será que existe, afinal, outra canção moderna para se pôr ao lado de "Beim Schlafengehen"? Talvez só mesmo "Morgen!", uma das grandes canções de esperança amorosa de todos os tempos, cantada por Bonney com delicadezas de tormento e de pressentimento. Piano e voz se mesclam, ao modo de Schumann, desde o início dessa música, que faz do prólogo no piano a lembrança de algo muito maior e, com isso, torna natural a entrada, no meio de uma frase, da voz, com a palavra "und" ("e"). "E o sol há de brilhar de novo... / e estaremos juntos nessa terra coberta de luz", dizem os versos não muito felizes de John Henry Mackay; mas diz, em outro tom, a arte de Strauss, que chega aqui ao seu coração, em ambos os sentidos.
O olhar "sem palavras" que antecede à "calma alegria" cabe à cantora sozinha, assim como é do pianista a fantasia final, num tempo espantosamente alargado, capaz de criar, em poucos compassos, poucos acordes de quinta aumentada, toda metamorfose do que passou no que virá, com uma convicção definitiva e que só se pode chamar de musical.
Em momentos como esse, Strauss chega no limite da cognição, ou do sentimento, que, no caso, são uma coisa só. O panorama da vida é outro à luz de canções assim. Que um compositor seja capaz dessa morte e dessa transfiguração é um dos mistérios que a música revela, ou deflagra: a morte e transfiguração de cada um de nós, vivida de dentro e de fora, no espaço de uma canção.


Avaliação:


Disco: Vier letzte Lieder - 15 Lieder
Compositor: Richard Strauss
Soprano: Barbara Bonney
Lançamento: Decca/London
Quanto: R$ 20, em média



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