São Paulo, Terça-feira, 20 de Abril de 1999
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CINEMA
Favela é "trailer" do Brasil, diz Cacá Diegues


"Orfeu", nova produção do cineasta, que adaptou a peça de Vinícius de Moraes para os tempos modernos, tem pré-estréia a partir de hoje


JOSÉ GERALDO COUTO
da Equipe de Articulistas

Cacá Diegues, 58, queria fazer seu "Orfeu" desde que assistiu, indignado, à versão do cineasta francês Marcel Camus para a peça "Orfeu da Conceição", de Vinícius de Moraes, há 40 anos.
Em 80, começou a preparar um roteiro em parceria com Vinícius, mas a morte do poeta abortou o projeto. Em 90, produtores americanos resolveram bancar o filme, mas faliram em seguida.
Agora, finalmente, Diegues apresenta seu "Orfeu", que tem pré-estréia a partir de hoje e que entra em cartaz nacionalmente na próxima sexta.
Em entrevista à Folha o diretor fala sobre o filme e avisa: "A miséria não é lírica, a miséria não é engraçada, ser pobre é uma merda. Mas a favela é um "trailer" do Brasil". Leia a seguir trechos da conversa.

Folha - O que mudou em sua concepção de "Orfeu", de 80 para cá?
Cacá Diegues -
Acho que o filme ficou mais denso. Ainda bem que eu não fiz nem em 80, nem em 90. Fiz no momento oportuno.
Resolvi jogar os projetos anteriores fora e começar do zero. Passei dois anos pesquisando favela carioca, me juntei com o Paulo Lins (autor do romance "Cidade de Deus"), com o Clóvis Bueno (diretor de arte), gente que eu sabia que tinha conhecimento do meio.
Subi e desci morro, entrevistei traficantes, associações de moradores, adolescentes, sambistas, tudo o que você pode imaginar.
Folha - A versão anterior não teria o mesmo substrato social?
Diegues -
Talvez, mas não com a mesma densidade que tem hoje. Descobri o paradoxo principal da favela, que é o de ser uma vergonha social, um gueto de excluídos, mas, ao mesmo tempo, um tesouro cultural. Não só de experiências artísticas, mas também de costumes, de linguagem, de relações humanas, de ética.
A favela é uma espécie de "trailer" do Brasil, é um caldeirão tenso, que pode ir para o bem ou para o mal. Tanto pode sair para uma coisa maravilhosa, como para um desastre nacional pavoroso.
Claro que não é esse o meu tema. Não fiz um filme sobre favela. O tema do filme é uma história de amor, é o mito de Orfeu e Eurídice transferido para nossos dias. Mas me preocupo com o entorno em que essa história se passa. Não pretendo dar conta dele. Nem cem filmes dariam conta do que se passa hoje nas favelas do Rio.
Folha - Você filmou nas favelas?
Diegues -
Só algumas cenas. A maior parte é cenográfica, é uma montagem de vários pedaços de favela: o largo é copiado do Vidigal, o barzinho é da Mangueira, os painéis são do Cantagalo.
Filmar "in loco" ia ser muito mais complicado, do ponto de vista da produção, além de ser uma invasão da vida dos moradores.
Vai ter gente que vai dizer que "a favela não é assim", porque ninguém sabe como é. Venho com a minha visão, com o que eu vi.
A favela, ao mesmo tempo que é um lugar de extrema pobreza, é um lugar de extrema modernidade -cultural e material, também. As favelas estão cheias de parabólicas. Encontrei escolas de informática no Vigário Geral, na Mangueira, na Rocinha, na Tavares Bastos. Saiu na "Veja" que na Rocinha 5.000 moradores já têm celular.
Folha - Como você "casou" a narrativa do filme com o desfile da Viradouro no Carnaval?
Diegues -
Quando convidei o Joãosinho Trinta -um artista excepcional, um renascentista popular- para trabalhar no meu filme, ele estava sem enredo para a Viradouro e teve um estalo: resolveu usar Orfeu como tema.
Pudemos então filmar o desfile como sendo o da nossa escola fictícia, a Unidos da Carioca. Não me meti em nada do desfile da Viradouro. O Joãosinho criou tudo, inclusive as fantasias dos atores.
Filmamos o desfile oficial, na segunda-feira de Carnaval, com oito câmeras, e o desfile das campeãs, no sábado seguinte, com cinco. Joãosinho nos deu o "mapa" do desfile, dizendo onde ficava cada ala, onde ia cada ator. Pudemos nos preparar para filmar tudo o que nos interessava.
Dias depois, fiz o que chamamos de "pick up", os detalhes do desfile, com uns 300 membros da escola como figurantes, e aí sim os nossos atores cantaram o samba-enredo do Caetano, que obviamente não era o da Viradouro. Na montagem, parece tudo uma coisa só.
Folha - Do ponto de vista narrativo, como você estruturou o filme?
Diegues -
Depois daquele prólogo "mágico", em que Orfeu faz amanhecer tocando violão, o filme tem três partes bem distintas.
A primeira é totalmente realista, quase documental, mostrando a relação do Orfeu com a comunidade, com a família, as mulheres. A segunda é a parte da fantasia, é o Carnaval, quando você ornamenta a realidade, que continua lá no fundo, mas ornamentada.
A terceira é o delírio do Orfeu, a partir da morte da Eurídice. A tensão fica maior, os planos são mais longos, a fotografia é mais sombria, há interferências que saem da cabeça do Orfeu.
Folha - Como você compôs o personagem do traficante Lucinho, que não existia na peça?
Diegues -
Lucinho é o amigo de infância de Orfeu, que seguiu outro caminho. Os dois se amam, mesmo sendo opostos. Lucinho quer provar o tempo todo que é tão bom quanto Orfeu, embora não saiba fazer arte.
O personagem tem um substrato de realidade muito grande. Quando o Orfeu lhe diz "Você vai viver pouco", e ele responde "Mas esse pouco eu vivo bem", esta é uma frase que ouvi de um traficante.
A mentalidade trágica desses traficantes me impressionou. Eles são todos meio hamletianos. Sabem que vão morrer, que não têm futuro nenhum. Isso gera um sentimento trágico da vida que eu tentei colocar no Lucinho.
Folha - Você aproveitou o fato de a favela ser um espaço vertical, íngreme, para um tipo de "mise-en-scène" em que essa verticalidade é utilizada dramaticamente...
Diegues -
Quando comecei a fazer locação, a ir à favela, concluí duas coisas, com o (diretor de fotografia) Affonso Beato.
Primeiro, que dentro de uma favela os movimentos só são possíveis com "steadycam" ou câmera na mão. Não dá para botar uma grua, nem um trilho. Segundo, que ia filmar o tempo todo em "plongée" e "contre-plongée".
Em vez de deixar isso correr aleatoriamente, a gente tentou transformar em linguagem. O personagem forte em cima, o fraco em baixo etc. Você adapta sua "mise-en-scène" às circunstâncias.
Folha - No trânsito entre mito e realidade, é a luz que, de certo modo, introduz a dimensão mítica...
Diegues -
Sim. Esse é um filme também sobre a vitória da arte como forma superior de conhecimento e de relação humana.
O filme era dividido em quatro dias, fiz questão de marcar as passagens dos dias por momentos que fossem formalmente artísticos, que tivessem uma pujança artística capaz de fazer o dia mudar.
O primeiro dia nasce porque Orfeu toca violão. O segundo, porque eles fizeram amor. Quando Lucinho morre, vira noite de repente. Quando Orfeu empunha o violão, faz o sol nascer. Quando empunha o revólver, faz a noite cair.


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