|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ERUDITO/CRÍTICA
Chucrute à veneziana ou Bach traduzido em música italiana
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
A Bach o que é de Bach e à
Itália o que é da Itália. Mas o
gênio de um e o espírito da outra
se confundem muito mais do que
se pensa, como ficou demonstrado pelo Concerto Italiano, anteontem, tocando "Concertos
Brandemburgueses" no Cultura
Artística.
Os seis "Brandemburgueses"
foram compostos por Bach (1685-1750) provavelmente em fins da
década de 1710, quando morava
em Cöthen, com um excelente
grupo de músicos à disposição.
Levam ao limite as lições de seu
contemporâneo italiano Antonio
Vivaldi, de quem Bach absorve a
idéia do concerto moderno, para
um ou mais instrumentos solistas
e orquestra.
Na terça-feira, o maestro/cravista Rinaldo Alessandrini e seu
grupo -três violinos, três violas,
duas violas da gamba, três violoncelos, violone (o contrabaixo antigo), flauta, três oboés, fagote e
duas trompas, em variadas combinações e todos na devida versão
barroca- tocaram os "Brandemburgueses" nš 1, 3 e 6, entremeados de "Sinfonias" (termo barroco para abertura ou prelúdio).
E tocaram como se fosse música
italiana, escrita à moda contrapuntística alemã, o que afinal é só
outro ponto de vista para a música alemã escrita à moda italiana.
A Bach o que é de Bach; e a sensação habitual é de que tudo está
ou vem de Bach. Como se tudo,
mesmo, na música dos últimos
300 anos começasse na cabeça do
prodigioso provinciano organista
barroco.
Isso só prova a força dessa música, e comprova mais uma vez
nossa vontade de inocência. Pois
é justamente no que Bach faz da
música italiana, por exemplo, que
seu gênio se manifesta com expressão mais viva. A repetição
dessa verdade se deve ao Concerto Italiano, numa noite em que
não chegou a ser o que é, mas
mostrou bastante do que pode
ser.
De melhor: a energia, a velocidade, a precisão. No terceiro movimento do "Concerto Brandemburguês" nš 3, o metrônomo parecia enlouquecido; mas a "spalla" Francesca Vicari mantinha
afinação e charme como se estivesse num minueto, regendo de
dentro da música tanto quanto o
cravista.
Trompa
Já nos minuetos do "Brandemburguês" nš 1, o conjunto inteiro
torcia para as trompas de caça
não fazerem de novo o que tinham feito no "Allegro", acabando com qualquer pretensão de
charme ou elegância. É dura a vida do trompista, e muito pior a do
trompista barroco, que nem ao
menos tem chaves para ajudar.
Acerta 1 milhão de notas, mas
basta perder a tensão nos lábios
por um segundo e catástrofe.
Como são lindos os oboés barrocos, por outro lado. Cada escalinha em terças soa como se nunca
se tivesse ouvido isso antes. E as
dissonâncias suspensas na "Sinfonia" da "Cantata BWV 35", com
Alessandrini fazendo seu rock
por baixo, foram um momento de
grande música, em que a qualidade sonora dos instrumentos antigos fazia toda a diferença. Também no "Brandemburguês" nš 6
-duas violas solistas em confronto com a gamba-, a escuridão dos timbres chegava a espantar ("em que sentido?", perguntava um dândi no intervalo).
Um concerto que ensina e surpreende já não é pouca coisa. Se se
pode cobrar encantamento, é só
porque a gente sempre quer mais
-quer tudo- da música.
Avaliação:
Texto Anterior: Artes: MAM abriga ode ao abstracionismo Próximo Texto: Gastronomia: Itália sedia a primeira universidade da comida Índice
|