São Paulo, quinta-feira, 20 de maio de 2004

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ERUDITO/CRÍTICA

Chucrute à veneziana ou Bach traduzido em música italiana

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

A Bach o que é de Bach e à Itália o que é da Itália. Mas o gênio de um e o espírito da outra se confundem muito mais do que se pensa, como ficou demonstrado pelo Concerto Italiano, anteontem, tocando "Concertos Brandemburgueses" no Cultura Artística.
Os seis "Brandemburgueses" foram compostos por Bach (1685-1750) provavelmente em fins da década de 1710, quando morava em Cöthen, com um excelente grupo de músicos à disposição. Levam ao limite as lições de seu contemporâneo italiano Antonio Vivaldi, de quem Bach absorve a idéia do concerto moderno, para um ou mais instrumentos solistas e orquestra.
Na terça-feira, o maestro/cravista Rinaldo Alessandrini e seu grupo -três violinos, três violas, duas violas da gamba, três violoncelos, violone (o contrabaixo antigo), flauta, três oboés, fagote e duas trompas, em variadas combinações e todos na devida versão barroca- tocaram os "Brandemburgueses" nš 1, 3 e 6, entremeados de "Sinfonias" (termo barroco para abertura ou prelúdio).
E tocaram como se fosse música italiana, escrita à moda contrapuntística alemã, o que afinal é só outro ponto de vista para a música alemã escrita à moda italiana.
A Bach o que é de Bach; e a sensação habitual é de que tudo está ou vem de Bach. Como se tudo, mesmo, na música dos últimos 300 anos começasse na cabeça do prodigioso provinciano organista barroco.
Isso só prova a força dessa música, e comprova mais uma vez nossa vontade de inocência. Pois é justamente no que Bach faz da música italiana, por exemplo, que seu gênio se manifesta com expressão mais viva. A repetição dessa verdade se deve ao Concerto Italiano, numa noite em que não chegou a ser o que é, mas mostrou bastante do que pode ser.
De melhor: a energia, a velocidade, a precisão. No terceiro movimento do "Concerto Brandemburguês" nš 3, o metrônomo parecia enlouquecido; mas a "spalla" Francesca Vicari mantinha afinação e charme como se estivesse num minueto, regendo de dentro da música tanto quanto o cravista.

Trompa
Já nos minuetos do "Brandemburguês" nš 1, o conjunto inteiro torcia para as trompas de caça não fazerem de novo o que tinham feito no "Allegro", acabando com qualquer pretensão de charme ou elegância. É dura a vida do trompista, e muito pior a do trompista barroco, que nem ao menos tem chaves para ajudar. Acerta 1 milhão de notas, mas basta perder a tensão nos lábios por um segundo e catástrofe.
Como são lindos os oboés barrocos, por outro lado. Cada escalinha em terças soa como se nunca se tivesse ouvido isso antes. E as dissonâncias suspensas na "Sinfonia" da "Cantata BWV 35", com Alessandrini fazendo seu rock por baixo, foram um momento de grande música, em que a qualidade sonora dos instrumentos antigos fazia toda a diferença. Também no "Brandemburguês" nš 6 -duas violas solistas em confronto com a gamba-, a escuridão dos timbres chegava a espantar ("em que sentido?", perguntava um dândi no intervalo).
Um concerto que ensina e surpreende já não é pouca coisa. Se se pode cobrar encantamento, é só porque a gente sempre quer mais -quer tudo- da música.


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