São Paulo, sexta-feira, 20 de maio de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CINEMA

"Terra em Transe", lançado em 1967, clássico do cinema novo, reestréia hoje em SP e no Rio em cópia restaurada

Volta de Glauber abre labirinto da memória

SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL

É mais do que uma reestréia. Há um jogo da memória -do cinema brasileiro e da história do país- por trás do relançamento, hoje, de "Terra em Transe", terceiro longa do cineasta baiano Glauber Rocha (1939-1981).
Montador do filme, o documentarista Eduardo Escorel supervisionou o processo de restauração que salvou o longa do desaparecimento.
Recuperar "Terra em Transe", lançado originalmente em 1967, foi para Escorel uma ocasião de revisitar um período em que o Brasil convivia com a ditadura militar e Glauber levava adiante sua "proposta nada modesta de reinventar o cinema e o mundo a cada filme".
Hoje, Escorel acha que aderiu ao projeto graças "à irresponsabilidade dos 21 anos", idade que tinha quando o telefone tocou em sua casa, e era Glauber com o convite. Escorel foi substituir um montador que se demitiu na primeira semana de trabalho, inconformado com a constante quebra de regras solicitada pelo diretor.
"Quando a gente é muito jovem, se beneficia da própria ignorância. Está disposto a tudo. Era um filme favorável a quem não tinha parâmetros claros, regras, princípios", diz um modesto Escorel, que àquela altura tinha um currículo cinematográfico de um item só: a montagem de "O Padre e a Moça" (1965), de Joaquim Pedro de Andrade, outro ícone do movimento do cinema novo.
A idéia de que a produção de Glauber Rocha se configurava num "momento cinematográfico importante" estava clara para o ator Hugo Carvana, que pediu ao diretor um lugar no elenco de "Terra em Transe".
A conquista do personagem Álvaro não livrou Carvana de "alguns momentos de choque e um certo sofrimento" nas filmagens. O "choque" surgiu quando Glauber impôs seu modelo de interpretação. "Ele não queria que o ator soubesse o que fazia. Eu sou extremamente racional, acho que o ator precisa representar com pleno conhecimento", diz ele.
O sofrimento deu lugar ao aprendizado: "Vi que eu era intolerante. Tinha um só olhar para a interpretação. Aprendi que sou capaz de trabalhar no improviso, na tensão, no desconhecido".
Quando se refere à tensão das filmagens, Carvana assinala o método segundo o qual, para Glauber, "a hora boa de filmar era quando o ator estivesse absolutamente inseguro e tenso, com os nervos em frangalhos".
A desestabilização emocional durante as filmagens não está entre as lembranças de Danuza Leão, que interpreta Silvia, musa do protagonista, Paulo Martins (Jardel Filho), e do antagonista Porfírio Diaz (Paulo Autran), de "Terra em Transe".
"Comigo foi tudo mais suave. Eu tinha que dançar com Paulo Autran e cair nos braços de Jardel. Não precisava me desestruturar para isso", diz ela, que também é colunista da Folha.
Glauber não explicou a Danuza as razões de seu personagem nem seu lugar no filme. "Ele me jogava dentro da cena e dizia: "Faz isso" ou "Faz aquilo". Nunca me deram um roteiro. Deram-me falas, mas, como não consegui decorá-las, não falei uma palavra."
Mesmo sem que nada tenha sido dito, Danuza, que foi a mulher e o grande amor do jornalista Samuel Wainer (1912-1980), logo percebeu o paralelo entre Silvia e ela própria. "A Silvia era uma mulher muito elegante, que se vestia muito bem e que ficava rodando entre o poder e o amor por um jornalista idealista. Enfim, assuntos que eu conheci bastante bem."
Se na interpretação Glauber buscava o transe, na hora de produzir o filme ele agia "com uma noção de responsabilidade muito grande, sem nada de rebeldia, da imagem de diretor maluco, fora do eixo", diz o cineasta Zelito Viana, produtor-executivo do longa.
Engenheiro de formação, Viana diz que foi trabalhar com Glauber conhecendo-o "como um espectador comum, não como cineasta ou cinéfilo". Ou seja, sem idealizá-lo. Ao fim do filme, porém, decidiu reorientar sua carreira de produtor para a direção cinematográfica. "Sabia que nunca mais iria conseguir produzir um filme com o mesmo vigor."
O vigor de "Terra em Transe" e seu lugar na história do cinema e do Brasil não escapam ao produtor associado Cacá Diegues. "Além da importância cinematográfica, é preciso tomar consciência do caráter premonitório deste filme excepcional. O Brasil até hoje plagia "Terra em Transe'", diz.


Texto Anterior: Popload: O videoclipe do ano
Próximo Texto: Análise: Filme acerta ponteiros da cultura com a modernidade
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.