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CINEMA
"Terra em Transe", lançado em 1967, clássico do cinema novo, reestréia hoje em SP e no Rio em cópia restaurada
Volta de Glauber abre labirinto da memória
SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL
É mais do que uma reestréia. Há
um jogo da memória -do cinema brasileiro e da história do
país- por trás do relançamento,
hoje, de "Terra em Transe", terceiro longa do cineasta baiano
Glauber Rocha (1939-1981).
Montador do filme, o documentarista Eduardo Escorel supervisionou o processo de restauração que salvou o longa do desaparecimento.
Recuperar "Terra em Transe",
lançado originalmente em 1967,
foi para Escorel uma ocasião de
revisitar um período em que o
Brasil convivia com a ditadura
militar e Glauber levava adiante
sua "proposta nada modesta de
reinventar o cinema e o mundo a
cada filme".
Hoje, Escorel acha que aderiu
ao projeto graças "à irresponsabilidade dos 21 anos", idade que tinha quando o telefone tocou em
sua casa, e era Glauber com o convite. Escorel foi substituir um
montador que se demitiu na primeira semana de trabalho, inconformado com a constante quebra
de regras solicitada pelo diretor.
"Quando a gente é muito jovem,
se beneficia da própria ignorância. Está disposto a tudo. Era um
filme favorável a quem não tinha
parâmetros claros, regras, princípios", diz um modesto Escorel,
que àquela altura tinha um currículo cinematográfico de um item
só: a montagem de "O Padre e a
Moça" (1965), de Joaquim Pedro
de Andrade, outro ícone do movimento do cinema novo.
A idéia de que a produção de
Glauber Rocha se configurava
num "momento cinematográfico
importante" estava clara para o
ator Hugo Carvana, que pediu ao
diretor um lugar no elenco de
"Terra em Transe".
A conquista do personagem Álvaro não livrou Carvana de "alguns momentos de choque e um
certo sofrimento" nas filmagens.
O "choque" surgiu quando Glauber impôs seu modelo de interpretação. "Ele não queria que o
ator soubesse o que fazia. Eu sou
extremamente racional, acho que
o ator precisa representar com
pleno conhecimento", diz ele.
O sofrimento deu lugar ao
aprendizado: "Vi que eu era intolerante. Tinha um só olhar para a
interpretação. Aprendi que sou
capaz de trabalhar no improviso,
na tensão, no desconhecido".
Quando se refere à tensão das
filmagens, Carvana assinala o método segundo o qual, para Glauber, "a hora boa de filmar era
quando o ator estivesse absolutamente inseguro e tenso, com os
nervos em frangalhos".
A desestabilização emocional
durante as filmagens não está entre as lembranças de Danuza
Leão, que interpreta Silvia, musa
do protagonista, Paulo Martins
(Jardel Filho), e do antagonista
Porfírio Diaz (Paulo Autran), de
"Terra em Transe".
"Comigo foi tudo mais suave.
Eu tinha que dançar com Paulo
Autran e cair nos braços de Jardel.
Não precisava me desestruturar
para isso", diz ela, que também é
colunista da Folha.
Glauber não explicou a Danuza
as razões de seu personagem nem
seu lugar no filme. "Ele me jogava
dentro da cena e dizia: "Faz isso"
ou "Faz aquilo". Nunca me deram
um roteiro. Deram-me falas, mas,
como não consegui decorá-las,
não falei uma palavra."
Mesmo sem que nada tenha sido dito, Danuza, que foi a mulher
e o grande amor do jornalista Samuel Wainer (1912-1980), logo
percebeu o paralelo entre Silvia e
ela própria. "A Silvia era uma mulher muito elegante, que se vestia
muito bem e que ficava rodando
entre o poder e o amor por um
jornalista idealista. Enfim, assuntos que eu conheci bastante bem."
Se na interpretação Glauber
buscava o transe, na hora de produzir o filme ele agia "com uma
noção de responsabilidade muito
grande, sem nada de rebeldia, da
imagem de diretor maluco, fora
do eixo", diz o cineasta Zelito Viana, produtor-executivo do longa.
Engenheiro de formação, Viana
diz que foi trabalhar com Glauber
conhecendo-o "como um espectador comum, não como cineasta
ou cinéfilo". Ou seja, sem idealizá-lo. Ao fim do filme, porém, decidiu reorientar sua carreira de produtor para a direção cinematográfica. "Sabia que nunca mais
iria conseguir produzir um filme
com o mesmo vigor."
O vigor de "Terra em Transe" e
seu lugar na história do cinema e
do Brasil não escapam ao produtor associado Cacá Diegues.
"Além da importância cinematográfica, é preciso tomar consciência do caráter premonitório deste
filme excepcional. O Brasil até hoje plagia "Terra em Transe'", diz.
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