São Paulo, sexta-feira, 20 de maio de 2005

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ANÁLISE

Filme acerta ponteiros da cultura com a modernidade

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DE OPINIÃO

Em meio a um comício do governador populista d. Felipe Vieira, o "povo" é chamado a falar. Um homem surge, apresenta-se como sindicalista e começa a discursar. Subitamente, Paulo Martins, jornalista romântico, cindido entre a militância e a poesia, tapa com a mão a boca do infeliz, olha para a câmera e dispara: "Isto é o povo! Um imbecil, um analfabeto, um despolitizado".
Uma cena como essa bastaria para fazer de "Terra em Transe" um filme "polêmico", como se tornou comum classificá-lo. Em 1967, a esquerda brasileira vinha de uma retumbante derrota, com o golpe militar de 1964, e parte considerável da intelectualidade viu o filme como um desvario anarquista, decadente e ultrajante de um cineasta que pouco antes, com "Deus e o Diabo na Terra do Sol", não deixara dúvidas sobre sua "coerência" política. No filme anterior, de fato, era mais fácil identificar a "mensagem", que soava com clareza na trilha de Sergio Ricardo: "A terra é do homem, não é de Deus nem do Diabo". O fanatismo e o cangaço precisavam ser superados pela transformação social.
Em "Terra em Transe", ao contrário, a realidade se tornou polifônica, contraditória, ambígua, estilhaçada. Em alegorias, o povo, que com freqüência surgia na arte politicamente correta de esquerda como uma entidade idealizada, essencialmente boa e portadora do futuro, é tratado com crueza e ceticismo. Os políticos, conservadores ou não, são pouco confiáveis, quando não simplesmente sórdidos e monstruosos.
Não há mocinhos. Paulo Martins é um herói dilacerado, que descrê do poder da palavra e sente-se impotente em seu impulso de mudar a sociedade. "A poesia e a política são demais para um só homem" é a frase que o define.
O que "Terra em Transe" encena é uma crise. Crise do sujeito e da realidade política, da linguagem, do intelectual de esquerda e do populismo no Brasil. E o faz de uma maneira extraordinariamente poética, bela, densa, imaginosa, moderna, pelas mãos de um cineasta de 28 anos de idade, àquela altura já respeitado pela crítica e por seus pares internacionais, como Godard, um dos que assinaram um pedido para que "Terra em Transe" fosse liberado pela censura -o que aconteceu.
Nem tudo, porém, foi rejeição. Houve recepções calorosas e entusiasmadas. Em 67, em diversas áreas da cultura brasileira jovens artistas empenhavam-se na renovação de linguagens, recusando-se, como disse Caetano Veloso, a "folclorizar o subdesenvolvimento" e a subordinar a imaginação ao esquematismo da arte de "protesto", tão em voga à época.
Um vento cosmopolita e "avant-garde" voltava a soprar nas artes plásticas, no teatro e na música popular. Nomes como Hélio Oiticica, José Celso Martinez, Caetano Veloso e Gilberto Gil estavam em plena sintonia com a deflagração glauberiana. A instalação "Penetrável Tropicália", a montagem de "O Rei da Vela" e a apresentação de "Alegria, Alegria" e "Domingo no Parque", tudo isso, em 67, davam forma a uma onda que logo a seguir seria conhecida como tropicalismo. Uma onda que arrombou a festa, abriu portas e -como uma "neo-antropofagia"- tratou de acertou os ponteiros da cultura brasileira com a modernidade.


Terra em Transe
    
Direção: Glauber Rocha
Produção: Brasil, 1967
Com: Jardel Filho, Paulo Autran
Quando: a partir de hoje no Frei Caneca Unibanco Arteplex


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