São Paulo, sexta-feira, 20 de maio de 2005

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CDS

MPB

Trabalho traz composições de Lennon & McCartney, Caetano e Nelson Cavaquinho

CD exalta simbiose entre o piano de Mehmari e a voz de Ozzetti

LUIZ FERNANDO VIANNA
DA SUCURSAL DO RIO

Há discos de cantoras e pianistas em que o entrosamento entre as partes alcança resultados sublimes. Apenas dois exemplos: Ella Fitzgerald & Paul Smith, Nana Caymmi & Cesar Camargo Mariano. O avesso ocorre quando intérpretes usam a fórmula para extravasar suas vaidades, valendo-se dos pianistas como meros acompanhantes.
"Piano e Voz", de André Mehmari e Ná Ozzetti, se insere de maneira brilhante no primeiro caso. Poucas vezes no Brasil um disco feito nesse modelo chegou a um grau tão alto de simbiose.
E Mehmari e Ozzetti começaram a trabalhar juntos apenas em 2004, quando foram convidados para fazer um show em Porto Alegre. Segundo ela, a comunhão se estabeleceu rapidamente, durante a escolha do repertório, que obedeceu ao mais simples dos critérios: gostar das músicas e querer interpretá-las.
"Eu escolhi músicas que sonhava cantar há muito tempo. André também tinha algumas. Nossos desejos se ligaram naturalmente", simplifica Ozzetti.
O talento dos dois superou um outro risco, o do ecletismo. O CD tem, na sua diversificada lista de compositores, Ernesto Nazareth, Lennon & McCartney, Caetano Veloso, Arthur Hamilton e Nelson Cavaquinho, entre outros.
"A unidade é o nosso duo. Qualquer que fosse o repertório teria a cara da nossa união", afirma a cantora.
Todas as músicas passaram a ser de Mehmari & Ozzetti, como se fizessem parte de um recital tão rigoroso quanto íntimo, no qual a formação erudita do pianista e a extensão vocal da cantora são usadas de modo aparentemente natural, não como medalhas que devem ser ostentadas.
"As coisas que o André usou não foram muito planejadas. Ensaiando, ele se lembrava de referências e passava a usá-las", conta Ozzetti.
Dessa forma, "Pérolas aos Poucos" (José Miguel Wisnik/Paulo Neves), a primeira faixa, abre com uma citação a "Oferenda Musical", de Bach. Já "Because" (Lennon/McCartney) abre com uma sonata de Beethoven e, sem perder sua carne pop, ganha uma alma quase religiosa.
Essa capacidade de reinventar as músicas sem traí-las, iluminando possibilidades que estavam ocultas, aparece em outras ocasiões. Em "O Ciúme", toda a melancolia da música de Caetano vem à tona enquanto melodia e voz passeiam juntas na toada do rio São Francisco, o "velho Chico" da letra.
Em "Luz Negra", o piano envolve a voz de Ozzetti como se não houvesse separação entre ele e ela. Mehmari se permite fazer pequenas inserções de jazz e música clássica, sem modificar a base do samba triste de Nelson Cavaquinho.
Em "A Ostra e o Vento", é o Nino Rota de "Amarcord" que aparece na abertura, funcionando como chave para a canção onírica de Chico Buarque. O diálogo entre brisa e menina que há na letra é embalado por um piano que evoca as ondas do mar.
Mas o grande momento do disco é "Gabriela". Mehmari e Ozzetti regravaram toda a suíte composta por Tom Jobim e só registrada na íntegra pelo próprio maestro no disco "Passarim".
"Decidimos seguir à risca a partitura da forma que Tom a escreveu", explica Ozzetti.
O piano é percussivo em alguns momentos, torna-se amaxixado em outros e toca uma linda valsa na hora mais delicada da suíte. Suavemente aguda quando necessário, suingante em outras partes, Ozzetti mostra aqui por que é uma das melhoras cantoras do país. "Gabriela" termina com a ótima citação de "O Boto", a parceria inusitada de Jobim com Jararaca.
Com outros grandes momentos como "Chora um Rio" (versão para "Cry me a River", de Arthur Hamilton) e "Os Povos" (linda música de Milton Nascimento e Fernando Brant que estava esquecida), "Piano e Voz" é uma obra-prima para ser ouvida várias vezes, para se perceber todas as camadas que contém.


Piano e Voz
    
Artistas: André Mehmari e Ná Ozzetti
Gravadora: MCD
Quanto: R$ 26, em média


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