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CARLOS HEITOR CONY
Um chope e dois pastel
Nas três operações da mente
definidas pela lógica de
Aristóteles, a simples apreensão é
comum a todos os animais, inclusive e obviamente ao homem.
Vem, depois, o juízo, ou seja, a faculdade de emitir submete a
apreensão ao juízo e daí resulta o
raciocínio, que deu ao homem a
faculdade, tornada necessidade,
de se expressar. Fruto da apreensão, do juízo e do raciocínio, o homem logo desenvolveu a articulação verbal para denominar a
apreensão, desenvolver o juízo e
expressar o raciocínio.
Estava criada a linguagem.
É evidente que, após a Torre de
Babel, não há uniformidade de
uma língua em relação a outra
nem dentro de si própria. As manifestações da fala, determinadas
pelas intenções de cada homem,
acabam por provocar uma diversidade de incidentes individualizados de cada linguagem. Os que
falam, mesmo dentro de uma comunidade, empregam elementos
circunstanciais e pessoais, mas,
como a finalidade da linguagem é
a comunicação, foram criados os
limites finalmente aceitos por
uma espécie de consenso social.
Estava criada a Norma.
Apesar dela, quem fala só expressa ou modifica um acontecimento se, à sua volta, outras pessoas aderirem à sua linguagem.
Surge, então, o povo, autor da linguagem, não necessariamente,
mas comumente, em oposição à
Norma.
Há, portanto, variantes dentro
de uma mesma língua, que, a
partir de realizações individuais,
se tornam realizações coletivas.
Além de um acontecimento social, a língua é uma convenção
arbitrária, determinada e aprovada por circunstâncias também
arbitrárias. Para dar um exemplo
próximo, a língua falada no Brasil pela população não-escolarizada ou escolarizada deficientemente cria particularidades que
se diferenciam umas das outras e
todas da Norma.
Cada uma delas possui seu saber e seu sabor, sua lógica interna. Esses traços são inerentes a todas as línguas e em todas podemos destacar duas variantes principais: a culta e a coloquial.
A primeira, que se convencionou chamar de "Norma", é elaborada, histórica, tem enunciados
coerentes e maior riqueza de vocabulário; a segunda é variante
da oralidade, da informalidade,
do cotidiano, da necessidade imediata e quase inconsciente de se
nomear um sentimento ou situação. Daí que a linguagem oral
lentamente altera a Norma, mas
a recíproca não é verdadeira. Percebemos isso quando a gramática
passa a admitir o que antes considerava erro.
São diversos os motivos que levam ao desvio da Norma. Um deles é a tendência ao menor esforço, que observamos nas construções "tu vai", "ele vai", "nós vai".
Se usamos o pronome pessoal, por
que precisamos inserir no verbo a
desinência número-pessoal? Tanta lógica existe nesse uso do povo
que o inglês adotou como norma
culta "I go", "we go", "they go".
Fenômeno semelhante ocorre
quando se constrói o plural no
português popular. O signo lingüístico remete-se à essência do
objeto concreto, definido em si
mesmo como, por exemplo, um
"pastel". Todos sabemos o que é
pastel e usamos a palavra pastel
para designar nada mais nada
menos do que o pastel. No entanto, a marca do plural -no português, o "s"- não está no objeto,
tampouco em sua essência de pastel, mas apenas na palavra. Ao
usar um numeral para exprimir
quantidade, não seria necessário
colocar o "s" e as desinências
prescritas pela Norma. Seria uma
redundância. Daí a freqüência
com que se ouve nos bares "um
chope e dois pastel". Um milhão
de coisas concretas, limitadas pelo que se conhece e apreende como "pastel", não modifica cada
pastel em si, tornando-o uma coisa que só existirá como palavra,
mas não uma realidade física nova, diferente da anterior. Por que
então falar "pastéis", que designa
um objeto inexistente para o qual
se criou um conjunto de sílabas
que deforma a realidade, a essência do objeto preexistente, que é o
pastel?
Não apenas a lógica e o bom
senso mas o menor esforço, mais
do que a ignorância ou aversão à
Norma, são responsáveis pela
maior parte das mudanças e
adaptações. Daí que está sendo
criada a linguagem dos internautas, que chega a extremos do uso
exclusivo de consoantes, como
"blz" para expressar "beleza",
"bj" para "beijo" ou "tb" para
"também". Aqui, também existe
coerência subliminar, uma vez
que as consoantes já são portadoras de vogal em sua pronúncia e
há línguas que não são vocálicas.
No limite, a tendência pode retroceder aos ideogramas de algumas
das línguas orientais.
Anteriores ao "internetês", há
linguagens especializadas para
determinados grupos, como o
"economês" e outras, que funcionam como signos de uma cabala
setorial em expansão.
Mesmo nesses casos, o da apropriação de uma linguagem cabalística, quase conspiratória, para
o exercício de uma atividade profissional ou recreativa, descobrimos o povo, em sua acepção mais
larga, como autor da linguagem.
Não se concluirá daí que, criando
o coloquial, a fala do dia-a-dia, o
povo agride a Norma por prazer
ou revolta. Inconscientemente, ele
sabe que, mais cedo ou mais tarde, a Norma lhe dará razão e mérito.
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