São Paulo, sábado, 20 de maio de 2006

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LIVROS

ROMANCE

Autor diverte com narrativa de situações fantasiosas e tom debochado

Cony recorre ao inexplicável em "O Adiantado da Hora"

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

Enquanto muita gente perde horas rascunhando um bilhete de cinco linhas, Carlos Heitor Cony escreve como quem respira. "O Adiantado da Hora" é o sétimo romance que publica desde 1995 -ano em que, interrompendo um silêncio de 22 anos, voltou ao gênero com "Quase Memória". Há ainda, claro, as crônicas diárias na Folha, os livros juvenis, o "romance-reportagem" "O Beijo da Morte", sua participação na Folha Online, sem contar o trabalho de comentarista na rádio CBN e na BandNews.
Em "O Adiantado da Hora", não se vai encontrar muito daquele lirismo bem medido com que o autor freqüentemente encanta quem acompanha as suas crônicas. Mas seus leitores diários conhecem também o gesto subitamente extravagante, o áspero recurso ao inexplicável -que esse romance maneja com notável fluência narrativa.
A história é das mais enroladas. Zé Mário, uma espécie de faz-tudo num escritório de advocacia carioca, é deslocado para a região de Cabo Frio, onde terá de investigar o desaparecimento de uma ex-comissária de bordo alemã e suas possíveis relações com a eventual construção de uma bomba atômica brasileira.

Cenário setentista
Embora seja imprecisa a data da narrativa, todas as referências apontam para meados da década de 70: tempos do acordo nuclear Brasil-Alemanha, do caso Doca Street (o famoso assassinato da socialite Ângela Diniz, a "Pantera Mineira", ocorreu em Búzios), e, de modo mais geral, de uma aceleração do processo de descompressão dos costumes sexuais da sociedade brasileira.
É assim que a ex-comissária, dona de belas "coxas teutônicas", conforme se comenta, terá um caso de amor com um artesão negro, "esguio como um pente", e também com Maria Ignês, bonita filha de um político tratante que todos conhecem pelo nome de Seabra.
Esse último, figura capaz de fingir-se amnésico diante da própria filha para fugir de um flagrante de adultério, dá o tom debochado e fantasioso de toda a história, que acaba contaminando a credibilidade do narrador.
Não sabemos se o negro é na verdade um feiticeiro, um assassino ou um simples escamador de peixe no mercado. Mas sabemos que a alemã e Maria Ignês "se curtiram adoidadas, a alemã pela carne nova que encontrara, Maria Ignês pela experiência que nunca lhe passara pela cabeça, tronco e membros".

"Bossa"
A vida sexual dos personagens, narrada sem muitos detalhes, mas com bastante entusiasmo, termina parecendo mais real do que eles próprios. O senso de humor -especialmente feliz na denominação dos capítulos do romance-, a "bossa" da sintaxe e a eficiência na exposição do enredo rocambolesco fazem de "O Adiantado da Hora" uma leitura fácil e divertida.
Só isso? Só isso, e mais o vazio em volta: areais a perder de vista, os redemoinhos de um mar "rude e terrível", e a sensação de um absurdo que não é propriamente "existencial" (ao modo de Sartre e Camus), mas parece corroer até mesmo as experiências sensoriais mais imediatas do indivíduo, submetendo-o a uma espécie de farsa alucinada, ao fim da qual, como diz a epígrafe do livro, a loucura tudo vence.


O Adiantado da Hora
Autor: Carlos Heitor Cony Editora: Objetiva Quanto: R$ 32,90 (217 págs.)



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