São Paulo, segunda-feira, 20 de junho de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CINEMA

Croata Rajko Grlic dirige primeiro filme co-financiado e co-produzido pelas antigas repúblicas da federação socialista

Projeto cinematográfico "une" a Iugoslávia

MATTHEW ROBINSON
DA REUTERS, EM PESTANI (MACEDÔNIA)

No alto de uma montanha macedônia, um projeto único de colaboração está em curso entre países que no passado faziam parte da Iugoslávia, para revisitar a calma antes da tempestade que causou a cisão do país.
"Karaula" (posto de fronteira) é o primeiro filme co-financiado e co-produzido pelas antigas repúblicas da federação socialista depois que irrompeu a Guerra da Croácia em 1991, seguida de maneira tão feroz pelo conflito bósnio iniciado no ano seguinte.
"Trata-se de uma história que mais ou menos constitui nossa memória coletiva", diz o diretor croata Rajko Grlic sobre o filme, que toma por tema a vida em uma complicada unidade de fronteira do Exército iugoslavo em 1987.
"Estamos brincando com essa memória e tentando descobrir por que e como a guerra chegou tão facilmente aqui", disse.
O veterano diretor em 1991 dirigiu o último dos filmes pan-iugoslavos, "Caruga", sobre um bandido no leste da Croácia, logo depois da Primeira Guerra Mundial, cujos sonhos de um Estado comunista desaparecem gradualmente à medida que sua pilhagem se torna mais e mais lucrativa.
A guerra na Croácia, de 1991 a 1995, e a na Bósnia, de 1992 a 1995, custaram 300 mil vidas e causaram sérios problemas a outros milhões de pessoas. Também serviram de inspiração a uma série de filmes sombrios, satíricos e contrários à guerra, como "Pretty Village, Pretty Flame" (bela aldeia, bela chama), marcante trabalho do sérvio Srdjan Dragojevic, em 1996, e o agridoce "Terra de Ninguém", dirigido pelo bósnio Danis Tanovic, co-produção de Eslovênia, França e Itália que conquistou o Oscar de melhor filme estrangeiro em 2002.
Tanovic não recebeu verba de seu país empobrecido, e Grlic admite que a colaboração em "Karaula" foi ditada mais pelo pragmatismo do que por ideais elevados de catarse ou reconciliação.
"Todos esses países são muito pequenos e bastante pobres e, para realizar uma produção maior, é preciso co-produzir filmes", diz. "Assim, decidimos concorrer por verbas em todos os países, que usam mais ou menos o mesmo idioma e foram todos parte do mesmo país."
O resultado é um orçamento de cerca de US$ 2,4 milhões (cerca de R$ 4,7 milhões), boa parte do qual na forma de verbas dos governos de cada uma das antigas repúblicas, e uma equipe técnica e elenco de 120 pessoas vindos de toda a antiga Iugoslávia. Uma produtora de Kosovo, a Província sérvia ocupada por uma minoria albanesa cuja autonomia continua a ser contestada, também está representada. "Queríamos as melhores pessoas para criar uma atmosfera autêntica", diz o produtor bósnio Ademir Kenovic.
Grlic descreve o filme como uma comédia simples sobre um pequeno grupo de soldados, "um momento de silêncio" antes da tragédia. "Era um período em que todo mundo sabia que algo aconteceria, mas ninguém sabia o quê", diz, com um sorriso irônico.
Observar o interior do posto de fronteira revela uma coleção empoeirada de discos de rock iugoslavo dos anos 80 e uma esmaecida fotografia em preto-e-branco do Partizan, um time de futebol então multiétnico em Belgrado.
Uma pichação em letras grandes, na parede, evoca o lema da velha Iugoslávia: "Devemos proteger a irmandade e a união como protegeríamos nossos olhos".
O filme, que deve chegar aos cinemas dentro de um ano, traz o estudante de teatro croata Tonu Sgojanovic, o galã sérvio Sergej Trifunovic e o veterano ator bósnio Emil Hadzihafizbegovic.
Grlic diz que reuniu toda a equipe diversas semanas antes da filmagem para quebrar o gelo. "É a primeira vez que todos voltam a se reunir, com todas aquelas más lembranças e frustrações", disse.
"É difícil para eles, especialmente para as crianças que vêm de lugares com tanto nacionalismo. É por isso que os reunimos aqui, para que convivessem durante algumas semanas e aceitassem que são diferentes, mas ainda assim podem trabalhar juntos."
Grlic espera que "Karaula" seja o primeiro de muitos trabalhos colaborativos entre os problemáticos vizinhos dos Bálcãs, especialmente em um momento em que tentam avançar para além de filmes imputando culpa pelas guerras. "Todos aqueles filmes que tentavam lutar pelo meu lado, ou pelo lado dele, aqueles filmes meio de propaganda, acho que acabaram", diz.
Trifunovic, conhecido como o "James Dean da Sérvia", tinha apenas 18 anos e mal começara a carreira quando a guerra estourou. Diz que a cooperação e a camaradagem que encontrou no estúdio foram "especiais". "Esse é meu 13º filme, mas meu primeiro filme iugoslavo. Um filme de um país inexistente!"


Tradução Paulo Migliacci

Texto Anterior: Festival: Londrina mantém olhar "inclusivo" para o teatro
Próximo Texto: Saiba mais: Confrontos nos Bálcãs duraram uma década
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.