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CONTARDO CALLIGARIS
Cadê os cidadãos de São Paulo?
O crime conta com a falta de espírito cívico. Seria boa oportunidade para desmenti-lo
NESTES DIAS de violência (que
continuam em surdina),
houve e há um grande ausente: nós, o povo de São Paulo.
Claro, pedimos políticas e intervenções públicas à altura; segundo
nossa inclinação, insistimos nos direitos da população carcerária ou na
necessidade de uma repressão severa, mas tanto faz: em ambos os casos
(que, aliás, não são contraditórios),
ficamos em casa esperando que
Deus nos acuda. Você perguntará:
"Fazer o quê?".
Pois é, espanta-me que as grandes
organizações da sociedade civil, os
sindicatos, as igrejas, os partidos (indistintamente), as associações corporativas etc. não tenham convocado (nem planejem convocar, aparentemente) uma manifestação de
massa, silenciosa, sem palanques, só
para afirmar que, seja qual for a convicção política de cada um, as ruas da
cidade são nossas, não da barbárie.
Somos capazes de fechar bancos,
repartições e comércios para assistir
a um jogo da Copa ou por medo do
crime. Será que não saberíamos parar a cidade para proclamar que ela
nos pertence?
Não seria um gesto retórico, sem
conseqüência efetiva. Pergunte-se:
o que o crime organizado espera de
nós?
Assassinaram policiais e agentes
penitenciários. Destruíram ônibus,
caminhões da coleta do lixo, uma
ambulância, agências de banco, lojas. Mas evitaram produzir a morte
indiscriminada de cidadãos quaisquer.
Duvido que haja, atrás dessa estratégia, uma preocupação com nossas
vidas. Mas talvez haja, isso sim, uma
tentativa de ganhar ou de não perder nossa "cumplicidade". É uma
palavra forte?
Na quinta-feira passada, alguns
usuários, irritados pela ausência de
ônibus nas ruas, tentaram queimar
os poucos que circulavam ("Se não
há transporte, não há para ninguém", diziam). É a reação esperada
pelo crime, uma reação que confirmaria nossa incapacidade de entender o seguinte: o que é "público" é
nosso, as ambulâncias e os caminhões do lixo são nossos, os ônibus
são privados, mas seu serviço é nosso, e o mesmo vale para bancos e lojas.
Quanto aos policiais e aos agentes carcerários, eles são, literalmente, "os nossos".
Na noite de quinta-feira passada,
passei de carro na frente do posto da
PM da rua Jesuíno Arruda, no Itaim
Bibi. Sete ou oito cones de plástico
forçavam os motoristas a se afastar
um pouco (dois metros) da calçada.
Fora isso, tudo como sempre. O edifício não tinha sido transformado
em bunker fortificado com policiais
armadíssimos espreitando pelas
frestas de portas e janelas fechadas:
três homens fardados estavam de
pé, perto da entrada, atentos, mas
tranqüilos naquele momento, sorridentes. Apenas carregavam suas armas ordinárias e vestiam o habitual
colete à prova de balas.
Imprudência? Pode ser, mas eu
fui tocado pela declaração de força e
coragem, implícita na decisão de assegurar o plantão de sempre. O posto estava normalmente aberto para
o serviço dos cidadãos de São Paulo.
Teria gostado que crianças estivessem comigo naquele momento,
para que pudesse lhes mostrar os
gestos, grandes e pequenos, que tornam e mantêm "habitável" nossa cidade, para que sentissem orgulho de
"sua" polícia.
Na minha São Paulo ideal, aliás,
uma outra coisa já teria acontecido.
Com a ajuda dos grandes cotidianos
e da mídia do Estado, o governador
teria lançado uma subscrição pública para constituir um fundo de indenização para as famílias de policiais
e agentes assassinados ou feridos.
Ele teria convocado um conselho de
probos para administrar o fundo e
distribuir rapidamente as indenizações. A imprensa publicaria a cada
dia, em destaque, o valor acumulado
pelas doações dos paulistas. O governo federal quer ajudar? Que uma
medida provisória torne imediatamente dedutíveis do imposto (não
do imponível, do imposto) as doações a esse fundo.
Como você acha que o crime organizado se sentiria num Estado e numa cidade em que milhões de cidadãos desfilassem pelas ruas afirmando sua vontade de viver sem
medo? E num Estado e numa cidade
em que os próprios cidadãos mostrassem sua gratidão cuidando das
famílias dos que morrem no serviço
da comunidade?
Os momentos de crise podem ser
ocasiões de mudanças decisivas.
Não tanto de legislação, mas, sobretudo, de espírito. E muitos de nossos
males têm sua origem numa falta
endêmica de espírito cívico. O crime
conta com essa falta. Seria uma boa
oportunidade para desmenti-lo.
ccalligari@uol.com.br
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