São Paulo, domingo, 20 de julho de 2008

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Teste de resistência

Festival em galeria paulistana traz de volta a questão: há vida criativa entre as performances?

SILAS MARTÍ
DA REPORTAGEM LOCAL

Dez homens e mulheres -todos nus- se espremem dentro de um Fusca no pátio da galeria Vermelho, em São Paulo. O público acompanha a ação num silêncio quase fúnebre, quebrado por risos quando um dos ocupantes do carro aperta a buzina sem querer. Volta o silêncio, e os olhos ao redor acompanham a sucessão de pernas, braços, cabeças e bundas se contorcendo atrás das janelas embaçadas.
Há suspiros, gritos de "delícia" de um ou outro espectador, e um consenso de que já viram isso antes em alguma brincadeira de programa de auditório dominical -só que com roupas.
"Existe mesmo essa gincana, mas quem tiver um olhar mais delicado vai conseguir ver além dessa referência", opina Daniel Fagundes, artista responsável pela ação ocorrida no festival de performances Verbo, encerrado ontem na Vermelho.
Foram 51 trabalhos, entre vídeos e performances ao vivo, que colocaram em pauta a resistência da performance na arte hoje. O gênero, que teve maior expressão nos anos 60, também está sendo lembrado com a exposição, na galeria Brito Cimino, da sérvia Marina Abramovic, considerada a maior performer viva. E será parte importante da próxima Bienal de São Paulo, em outubro -seis dos 38 artistas já confirmados farão performances.
Apesar da aparente vitalidade, o que se viu na Verbo se conjuga como dúvida na visão de curadores, críticos e artistas ouvidos pela Folha. Além do Fusca cheio de gente pelada, houve a exibição de uma fisiculturista de fio dental, uma passeata de estandartes e cartazes em branco, cortes de cabelo e uma caixa de areia em que o público podia urinar.
"Há um certo desgaste", diz o curador Paulo Herkenhoff. "Nos anos 60 e 70, a performance tinha um caráter de contracultura, de ampliação da linguagem. Hoje essas questões já não se colocam, há poucas boas performances no Brasil."
"Hoje nada mais espanta", opina a crítica Aracy Amaral, que já dirigiu a Pinacoteca do Estado e o MAC-USP. "O fato é que os artistas dos anos 60 fizeram tudo o que hoje se pensa que se faz pela primeira vez."

Repetição
Mas às vezes a repetição é consciente. Na Verbo, o colombiano Carlos Monroy tinha uma lista de performances de outros artistas. O público escolhia e ele executava na hora trabalhos clássicos de gente como Abramovic. No dia de abertura da mostra, encarou a tarefa de mastigar uma cebola inteira e, mesmo de cabeça raspada, refez "The Artist Must Be Beautiful", em que a artista se despenteava gritando o nome da obra como um mantra.
"Para mim, performance vale uma única vez", diz Maurício Ianês, artista que também participou da Verbo com um vídeo. "Mas não acho que o público nem os artistas devam procurar a novidade pela novidade." Ele vai morar por duas semanas, nu e sem comida, em pleno pavilhão da próxima Bienal -será a sua performance.
Nuno Ramos, artista que também já investiu no gênero, concorda que há problemas com a reedição de uma performance. "Alguma coisa se transforma e provavelmente se perde nessa repetição", afirma. "Não daria para igualar a força do que já foi feito."
Mas com o "nivelamento de todas as manifestações artísticas", nas palavras de Herkenhoff, ou seja, depois da completa assimilação da performance pelo circuito artístico -no Brasil, o Museu de Arte Moderna de SP foi pioneiro ao adquirir para seu acervo uma performance da artista mineira Laura Lima-, a novidade já não é mais o foco.
"A questão do novo não é mais determinante", opina o professor de semiótica da PUC-SP Sérgio Basbaum. "Não há nada de novo para agredir."
"Tem muita coisa que se sustenta a partir de uma espécie de repetição, de simulacro", diz a curadora da última Bienal de São Paulo, Lisette Lagnado, que sai em defesa das performances. "Eu sou muito cúmplice de artista."
Essa crença na repetição levou Abramovic a investir todo o dinheiro que ganhou com suas performances num centro de preservação da memória do gênero, em Hudson, cidade ao norte de Nova York.
Parece contraditório preservar o que foi feito para ser efêmero, mas a performance já não é resistência ao circuito e tem se integrado ao mercado. "A performance é tão histórica quanto têmpera", lembra Nuno Ramos. "Não guarda a contundência que tinha nos anos 70, mas nenhum gênero guarda."
Na opinião do artista, só uma obra forte é capaz de repor esse fator de resistência. Faltam só aparecer na performance, então, as tais obras fortes.


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