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ROMANCE/"O AMANTE DETALHISTA"
Manguel busca erotismo nos detalhes
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
Numa das viagens menos célebres de Lemuel Gulliver, o
mercador inglês vai parar em
Brobdingnag, a terra dos gigantes.
Em certo momento, ele avista
uma ama-de-leite dar o peito a
um recém-nascido. A visão lhe dá
"náuseas": o seio é recoberto por
manchas e espinhas; a pele crestada revela horrendas fissuras que
só a observação ampliada de um
detalhe anatômico pode proporcionar.
Dois séculos depois (as aventuras de Gulliver são do início do século 18), o herói de "O Amante
Detalhista", do escritor canadense de origem argentina Alberto
Manguel, deleita-se com esses detalhes. Não estamos num país
imaginário, mas na cidade de Poitiers, na França. Em vez de uma
mesa gigantesca, o posto de observação são os banhos públicos.
Comum aos dois relatos é o fato
de eles, embora se referindo a coisas escabrosas, almejarem a condição de verdade literal. O do capitão Gulliver vale-se do recurso
do manuscrito entregue a outrem, para ser editado. As aventuras de Anatole Vasanpeine são
contadas à maneira de uma narrativa acadêmica.
O autor, que não é propriamente Manguel, mas outro "eu" não
nomeado, um historiador digamos, arrola os fatos da vida de Vasanpeine por meio de documentos, de primeira ou segunda mão,
como cartas, diários, livros de história, biografias e teses que se referem ao "caso".
O caso em questão é o de um
homem fixado nos pormenores,
principalmente nas minúcias da
fisionomia humana. A totalidade,
para ele, confunde-o, afronta-o,
dá-lhe vertigem. Instruído nas
técnicas da incipiente arte da fotografia por um livreiro japonês, ele
passa a clicar suas "presas" nos
"Bains-Douches", onde trabalha.
O procedimento é o seguinte:
ele aplica a lente a uma fenda ou
outra do cubículo onde a vítima
se banha e tira a foto, sem ver. Depois, em sua casa, amplia a parte
da anatomia capturada. São detalhes impressionistas -fissuras,
cavernas, protuberâncias- de
possíveis pernas, orelhas, nádegas, espáduas, que lhe dão imenso
prazer, exatamente graças à sua
incompletude ("a totalidade não
deixa espaço para o desejo").
A ruína se avizinha quando o
herói se apaixona por uma figura
humana de contornos esféricos,
que se torna para ele indivisível
como o átomo para os antigos
gregos. Da atividade de dissecação erótica até o amor prometido
pela totalidade impossível, o caminho prenuncia a tragédia.
Não admira que o desejo rime
com a morte, na atividade da fotografia, que congela o tempo, estanca o fluxo, retalha o corpo. É
uma idéia cara a cineastas como
Hitchcock e Antonioni. O autor
compara Vasanpeine a um saprófito, "planta cinzenta [...] que busca sustento naquilo que já morreu".
A novidade está no embate quase borgiano entre o autor, que
busca compreender e, portanto,
dar vida às partes, e o personagem, preso aos cacos de sua inadequação. No detalhe da bocarra
de Pantagruel, muito antes de Gulliver, o herói avistava cidades inteiras. Em seus modelos-cadáveres, Vasanpeine agora só vê o vazio e a morte. Uma fábula para os
novos tempos.
O Amante Detalhista
Autor: Alberto Manguel
Tradução: Jorio Dauster
Editora: Record
Quanto: R$ 28 (96 págs.)
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