São Paulo, sábado, 20 de agosto de 2005

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ROMANCE/"O AMANTE DETALHISTA"

Manguel busca erotismo nos detalhes

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

Numa das viagens menos célebres de Lemuel Gulliver, o mercador inglês vai parar em Brobdingnag, a terra dos gigantes. Em certo momento, ele avista uma ama-de-leite dar o peito a um recém-nascido. A visão lhe dá "náuseas": o seio é recoberto por manchas e espinhas; a pele crestada revela horrendas fissuras que só a observação ampliada de um detalhe anatômico pode proporcionar.
Dois séculos depois (as aventuras de Gulliver são do início do século 18), o herói de "O Amante Detalhista", do escritor canadense de origem argentina Alberto Manguel, deleita-se com esses detalhes. Não estamos num país imaginário, mas na cidade de Poitiers, na França. Em vez de uma mesa gigantesca, o posto de observação são os banhos públicos.
Comum aos dois relatos é o fato de eles, embora se referindo a coisas escabrosas, almejarem a condição de verdade literal. O do capitão Gulliver vale-se do recurso do manuscrito entregue a outrem, para ser editado. As aventuras de Anatole Vasanpeine são contadas à maneira de uma narrativa acadêmica.
O autor, que não é propriamente Manguel, mas outro "eu" não nomeado, um historiador digamos, arrola os fatos da vida de Vasanpeine por meio de documentos, de primeira ou segunda mão, como cartas, diários, livros de história, biografias e teses que se referem ao "caso".
O caso em questão é o de um homem fixado nos pormenores, principalmente nas minúcias da fisionomia humana. A totalidade, para ele, confunde-o, afronta-o, dá-lhe vertigem. Instruído nas técnicas da incipiente arte da fotografia por um livreiro japonês, ele passa a clicar suas "presas" nos "Bains-Douches", onde trabalha.
O procedimento é o seguinte: ele aplica a lente a uma fenda ou outra do cubículo onde a vítima se banha e tira a foto, sem ver. Depois, em sua casa, amplia a parte da anatomia capturada. São detalhes impressionistas -fissuras, cavernas, protuberâncias- de possíveis pernas, orelhas, nádegas, espáduas, que lhe dão imenso prazer, exatamente graças à sua incompletude ("a totalidade não deixa espaço para o desejo").
A ruína se avizinha quando o herói se apaixona por uma figura humana de contornos esféricos, que se torna para ele indivisível como o átomo para os antigos gregos. Da atividade de dissecação erótica até o amor prometido pela totalidade impossível, o caminho prenuncia a tragédia.
Não admira que o desejo rime com a morte, na atividade da fotografia, que congela o tempo, estanca o fluxo, retalha o corpo. É uma idéia cara a cineastas como Hitchcock e Antonioni. O autor compara Vasanpeine a um saprófito, "planta cinzenta [...] que busca sustento naquilo que já morreu".
A novidade está no embate quase borgiano entre o autor, que busca compreender e, portanto, dar vida às partes, e o personagem, preso aos cacos de sua inadequação. No detalhe da bocarra de Pantagruel, muito antes de Gulliver, o herói avistava cidades inteiras. Em seus modelos-cadáveres, Vasanpeine agora só vê o vazio e a morte. Uma fábula para os novos tempos.


O Amante Detalhista
   
Autor: Alberto Manguel
Tradução: Jorio Dauster
Editora: Record
Quanto: R$ 28 (96 págs.)


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