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NELSON ASCHER
Briga de família
As diferenças entre Décio e Gullar não são maiores do que as que existem entre Décio e os outros concretistas
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AO COMPLETAR 80 anos, Décio
Pignatari presenteou-nos,
numa entrevista, com juízos
duros, opiniões contundentes e cortes especialmente preparados por
sua língua e mente afiadas. Não há
muitos países onde o que os poetas
acham mereça mais atenção que a
dos leitores fiéis. Como no Brasil,
porém, agentes culturais infinitamente menos relevantes pontificam
a torto e a direito sobre o que lhes venha à cabeça, vale sempre a pena ouvir o que tem a dizer um criador cujos equívocos instigam mais que a
média dos acertos alheios.
Se nenhuma de suas tacapadas é
nova, nem faltam as que beiram a
idade da aposentadoria, convém recordar que, desde que ele cessou de
ser presença constante na mídia e
na academia, já amadureceu toda
uma geração que mal lhe conhece os
pontos de vista, para nem falar dos
pontos cegos.
Por menos bem mapeada que a
era à qual se referem esteja, internet
e web não só dispensam os jovens
que queiram contextualizar tais tópicos da necessidade de se
enfronharem nos arquivos de
jornais, percorrerem sebos, xerocarem publicações esgotadas, como
me dispensam igualmente de acrescentar notas de rodapé. O mesmo,
contudo, não se aplica às alfinetadas
de Décio, que provocaram a réplica
não menos pontiaguda de seu alvo,
Ferreira Gullar.
Quem tenha se restringido a esses
dois textos, sem conhecer direito a
obra poética, crítica, teórica bem como a atuação de ambos e dos demais
contemporâneos envolvidos, corre
o risco de crer que, seja estética, seja
ideologicamente, o poeta paulista e
o maranhense se encontram em
campos, se não em pólos, totalmente opostos. Já quem se meta nessa
pinimba se arrisca (merecidamente) a hostilizar e a apanhar dos dois
pseudo-antagonistas.
Adianto minha conclusão: tudo
que os aproxima, ou melhor, aparenta é maior, mais profundo e relevante do que aquilo que os aparta.
Mais: as diferenças entre Décio e
Gullar não são maiores do que as
que existem entre Décio e os outros
concretistas, entre Augusto e Haroldo de Campos, ou entre todos e poetas tão próximos a eles como, por
exemplo, José Paulo Paes e Sebastião Uchoa Leite. Trata-se, para encurtar a história, de peculiaridades
não de estilo ou escola, mas pessoais,
se tanto.
Para começar, quer queiram, quer
não, nossos dois poetas descendem
diretamente de Drummond e Cabral, isto é, da segunda geração modernista. Suas tentativas bem-sucedidas de, no duelo edípico, se contraporem aos mestres, junto com o esforço dos outros poetas acima, resultaram no nascimento de uma terceira geração modernista, uma geração que lançou mão de idéias e recursos dos respectivos pais para tentar sistematizar e recuperar a alegre
anarquia dos avós (Mário, Oswald,
Bopp, certo Bandeira).
O mais inesperado, como observei, é que, em determinados pontos
nada desprezíveis, Décio e Gullar se
assemelham antes um ao outro do
que qualquer um deles aos irmãos
Campos, José Lino Grunewald etc.
Entre esses pontos estão as artes
plásticas: nenhum poeta de sua geração (e, da anterior, apenas João
Cabral) foi tão influenciado por estas quanto eles que, a respeito delas,
não andaram, que eu lembre, trocando grandes tapas.
Por sua vez, enquanto os contemporâneos eram em geral liberais de
centro-esquerda, mas, no âmago da
alma, fundamentalmente apolíticos,
Gullar e Décio eram e são seres políticos de esquerda. Se, quem sabe,
aqui e ali, eles "fechavam" com vertentes ou facções rivais, convém dar
tanta ênfase a suas discordâncias
quanto às que surgiam, num dia
qualquer de 1925/26, depois da décima rodada de vodca, entre Kamenev
e Zinóviev. É, aliás, devido à politização dos dois poetas que, em seu(s)
círculo(s), foram eles que mais beberam do surrealismo. (E há sua paixão mútua por Mallarmé, que é uma
história à parte.)
Seria fácil acrescentar paralelos e
paralelos aos anteriores e, caso descêssemos às minúcias dos poemas,
manifestos, textos em prosa, aí então as surpresas se multiplicariam.
Deixo aqui sugeridos alguns paradoxos que, se meu ponto de vista fizer
sentido, deixam automaticamente
de sê-lo. Se o paulista não gostava do
projeto mais ambicioso do maranhense, o "Poema Sujo", que significa Haroldo de Campos ter traduzido
um poema que é seu gêmeo hispano-americano, "Blanco", de Octavio
Paz, e por que há tanto em comum
entre aquele e o romance "Panteros", de Décio? Se Gullar não acha
que o paulista é sequer um poeta, como é que pode apreciar justamente
os poemas de Augusto de Campos?
Como disse Brecht: "Quantas versões/ Tantas questões". O que conta,
afinal, é que a presente polêmica não
passa de uma briga de família, e
a nós, o que cabe é acompanhá-la
de fora.
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