São Paulo, segunda-feira, 20 de agosto de 2007

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NELSON ASCHER

Briga de família


As diferenças entre Décio e Gullar não são maiores do que as que existem entre Décio e os outros concretistas

AO COMPLETAR 80 anos, Décio Pignatari presenteou-nos, numa entrevista, com juízos duros, opiniões contundentes e cortes especialmente preparados por sua língua e mente afiadas. Não há muitos países onde o que os poetas acham mereça mais atenção que a dos leitores fiéis. Como no Brasil, porém, agentes culturais infinitamente menos relevantes pontificam a torto e a direito sobre o que lhes venha à cabeça, vale sempre a pena ouvir o que tem a dizer um criador cujos equívocos instigam mais que a média dos acertos alheios.
Se nenhuma de suas tacapadas é nova, nem faltam as que beiram a idade da aposentadoria, convém recordar que, desde que ele cessou de ser presença constante na mídia e na academia, já amadureceu toda uma geração que mal lhe conhece os pontos de vista, para nem falar dos pontos cegos.
Por menos bem mapeada que a era à qual se referem esteja, internet e web não só dispensam os jovens que queiram contextualizar tais tópicos da necessidade de se enfronharem nos arquivos de jornais, percorrerem sebos, xerocarem publicações esgotadas, como me dispensam igualmente de acrescentar notas de rodapé. O mesmo, contudo, não se aplica às alfinetadas de Décio, que provocaram a réplica não menos pontiaguda de seu alvo, Ferreira Gullar.
Quem tenha se restringido a esses dois textos, sem conhecer direito a obra poética, crítica, teórica bem como a atuação de ambos e dos demais contemporâneos envolvidos, corre o risco de crer que, seja estética, seja ideologicamente, o poeta paulista e o maranhense se encontram em campos, se não em pólos, totalmente opostos. Já quem se meta nessa pinimba se arrisca (merecidamente) a hostilizar e a apanhar dos dois pseudo-antagonistas.
Adianto minha conclusão: tudo que os aproxima, ou melhor, aparenta é maior, mais profundo e relevante do que aquilo que os aparta. Mais: as diferenças entre Décio e Gullar não são maiores do que as que existem entre Décio e os outros concretistas, entre Augusto e Haroldo de Campos, ou entre todos e poetas tão próximos a eles como, por exemplo, José Paulo Paes e Sebastião Uchoa Leite. Trata-se, para encurtar a história, de peculiaridades não de estilo ou escola, mas pessoais, se tanto.
Para começar, quer queiram, quer não, nossos dois poetas descendem diretamente de Drummond e Cabral, isto é, da segunda geração modernista. Suas tentativas bem-sucedidas de, no duelo edípico, se contraporem aos mestres, junto com o esforço dos outros poetas acima, resultaram no nascimento de uma terceira geração modernista, uma geração que lançou mão de idéias e recursos dos respectivos pais para tentar sistematizar e recuperar a alegre anarquia dos avós (Mário, Oswald, Bopp, certo Bandeira).
O mais inesperado, como observei, é que, em determinados pontos nada desprezíveis, Décio e Gullar se assemelham antes um ao outro do que qualquer um deles aos irmãos Campos, José Lino Grunewald etc. Entre esses pontos estão as artes plásticas: nenhum poeta de sua geração (e, da anterior, apenas João Cabral) foi tão influenciado por estas quanto eles que, a respeito delas, não andaram, que eu lembre, trocando grandes tapas.
Por sua vez, enquanto os contemporâneos eram em geral liberais de centro-esquerda, mas, no âmago da alma, fundamentalmente apolíticos, Gullar e Décio eram e são seres políticos de esquerda. Se, quem sabe, aqui e ali, eles "fechavam" com vertentes ou facções rivais, convém dar tanta ênfase a suas discordâncias quanto às que surgiam, num dia qualquer de 1925/26, depois da décima rodada de vodca, entre Kamenev e Zinóviev. É, aliás, devido à politização dos dois poetas que, em seu(s) círculo(s), foram eles que mais beberam do surrealismo. (E há sua paixão mútua por Mallarmé, que é uma história à parte.)
Seria fácil acrescentar paralelos e paralelos aos anteriores e, caso descêssemos às minúcias dos poemas, manifestos, textos em prosa, aí então as surpresas se multiplicariam. Deixo aqui sugeridos alguns paradoxos que, se meu ponto de vista fizer sentido, deixam automaticamente de sê-lo. Se o paulista não gostava do projeto mais ambicioso do maranhense, o "Poema Sujo", que significa Haroldo de Campos ter traduzido um poema que é seu gêmeo hispano-americano, "Blanco", de Octavio Paz, e por que há tanto em comum entre aquele e o romance "Panteros", de Décio? Se Gullar não acha que o paulista é sequer um poeta, como é que pode apreciar justamente os poemas de Augusto de Campos? Como disse Brecht: "Quantas versões/ Tantas questões". O que conta, afinal, é que a presente polêmica não passa de uma briga de família, e a nós, o que cabe é acompanhá-la de fora.


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