São Paulo, quinta-feira, 20 de agosto de 2009

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NINA HORTA

Da Amazônia que suspeitamos


Parecemos com os macaquinhos de Rousseau, espreitando como se fosse o primeiro dia do mundo


O POVO gastronômico anda ouriçado. O Grão Belém do Pará baixou por aqui, a Amazônia quer se dar a conhecer. Chovem informações novas, há que se reler Euclides da Cunha, refazer territórios, medir limites, inventar terroirs de pupunhas e açaís, olhar, cheirar, pegar. E os muito urbanos se confundem, os ribeirinhos da América Pescados, os farinheiros do Pão de Açúcar, os caçadores da Sadia, perdidos, o olhar de quem come tatu pensando que é coelho.
Os blogs de comida são rápidos, eficientes, lindos, tudo devoram, tudo mostram. E se adiantam nas notícias. Para os cronistas, sem foto ou ilustração, sobram os ossos triturados do pirarucu, as rações, a fibra cuspida. Cronistas capengam atrás dos blogueiros seguidos por borboletas amarelas ou azuis, farrapos, pescando o que sobrou da cabeça do menino Thiago Castanho, que cozinha tão bem e é inteligente, debaixo dos caracóis dos seus cabelos, uma história pra contar, de um mundo tão distante, no restaurante Remanso do Peixe, no Pará.
Já provamos todas as papas, as frutas, os sorvetes, as ervas. E cada vez nos parecemos mais com aqueles macaquinhos de Rousseau, espreitando intrigados entre as folhas, como se fosse o primeiro dia do mundo. Cheiramos a comida da Amazônia como se cheiram os vinhos, trincando as castanhas, amassando as folhas, abanando a mão sobre as panelas, respirando-lhes o vapor, comendo o pato, chupando o azedo do tucupi, engrolando as farofas e os peixes, ah, as farofas, como se tivéssemos nascido de cuia na mão, tomando açaí branco.
É então que se põe reparo nos nomes. Enquanto não soubermos nomear aqueles substantivos que ficam agarrados às coisas, aos ingredientes, como turus dentro do pau, a se domar, e comer com pimenta e limão, não vamos saber é nada. Queria ter um roçadinho por lá, farinhar, plantar umas macaxeiras, fazer um tucupi, uma goma para tacacá, morder o jambu sem medo, me esmerar na feitura de um beiju ou de um paneiro. Um dia ainda vou apanhar açaí no pé, amolecido ao sol e amassar na hora, conseguindo um caldo grosso e escuro, que espume sobre a farinha de tapioca.
Zanzar na margem do rio, tonta com o cheiro de taperebá maduro, num mormaço de fruta, de resina, com um dente de boto no pescoço pra tirar quebranto. De manhã, sair bem cedo, de mansinho, espantar as bananeiras em flor e as tucumãzeiras carregadas de cachos cor de fogo e amargar a língua até o talo com o amargo da jurubeba.
De almoço, faria coisa pouca, peixe cozido com sal, alfavaca e limão, pouca pimentas e chicória no molho. Desprezaria os camarões saltando no paneiro, para depois beber água do pote coberto de limo, na sombra das samambaias.
E zonza, com a leve podridão das mangas, das mangabas, dos biribás machucados, escutar as sementes estalando, querendo saltar. E ainda os peixes, talvez mais fáceis de nomear, grandes como bezerros ou miúdos como sardinha. Há que se aprender o pirarucu, o tambaqui, o tucunaré e o filhote. A banha do peixe que nunca vimos, da tartaruga que suspeitamos, os óleos das árvores que nos dão sombra, todos os óleos do mato a besuntar no corpo para o boto nos querer.
No banho de rio, boiando, queremos nos dependurar no galho do ingá, cobiçar o cacho de pitomba e, de longe, escutar a mão do pilão batendo compassada os tucumãs de canhapira. E a palhoça lá longe, com gente, gente salgando aracus.
Mulher cheirosa de ervas, de raízes, pele morena quase roxa, cor de pixuna espremida. Deve comer mel com farinha, regar o canteiro de couve e caruru, plantar pé de cravo. Domar o lagarto verde, o mofo, o urubu do pretume. Nada é perigoso, porque as ervas defumadas estão lá para curar, como a água do Ganges.
Tic. E primeiro era o Verbo, e o Verbo se fez carne e habitou entre nós.

ninahorta@uol.com.br


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