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DANÇA/CRÍTICA
"Metapolis" articula a topografia urbana-humana
INÊS BOGÉA
CRÍTICA DA FOLHA
Impenetrável na superfície,
a cidade ganha outra textura
nas dobras e reentrâncias do corpo humano, como se só assim sua
existência real se revelasse. Uma
saturação labiríntica de imagens e
movimentos expõe em cena a
combinação de civilidade e corporeidade, de adestramento e
prazer. "Metapolis" (2000), coreografia de Frédéric Flamand
com cenografia da arquiteta Zaha
Hadid, apresentada no teatro Alfa
na sexta, articula essa topografia
urbana-humana, como espaço
possível de realização.
Uma cidade utópica é construída com três pontes móveis, projeções e uma arquitetura de corpos.
Variada e heterogênea, a peça sugere articulações insólitas, na medida em que o corpo do bailarino
se vê transpassado ou transformado em imagem da cidade, ou
então se mostra como traço dessa
mesma cidade. A linguagem híbrida soma o break à dança contemporânea. É num ritmo descontínuo, de vetores desencontrados, com linhas de forças antagônicas, que a dança se constrói.
O corpo, por vezes, deixa de ter
gravidade e flutua na projeção de
um espaço imaginário. As formas
são apresentadas num jogo de espelhos, criando um fluxo frenético por cidades retratadas ou intuídas, de natureza contrastante
umas com as outras.
Flamand ordena uma pluralidade de referências, ecos mais ou
menos diretos de reflexões sobre
esse tema já clássico do debate
pós-moderno, que é o corpo no
contexto urbano. Exemplo: "O
Mundo Novo" (1791) de Giandomenico Tiepolo, quadro barroco
onde pessoas, de costas, contemplam o além-mar, traduz-se aqui
numa massa de corpos sobre as
pontes, olhando uma cidade virtual; ou a forma cubofuturista dos
trabalhos de Picasso para o balé
"Parade" (1917), que ganham outra feição nos corpos multifacetados pela tecnologia de ponta.
A platéia fica quase hipnotizada
pela avalanche de imagens, luzes,
gestos. O resultado, é verdade,
tende a um aplacamento dos sentidos -assim como no cotidiano,
com sua velocidade de informações e pulverização de tudo.
Por outro lado, a engenhosidade do cenário móvel (e figurino)
de Hadid estimula intensidades
diferentes: da obscuridade inicial
aos riscos luminosos atravessando o espaço, de um campo de forças onde os bailarinos se deslocam às roupas sem forma em que
são projetadas as imagens das cidades -fundidas aos corpos, que
dançam então, ao mesmo tempo,
virtual e realmente, na tela do fundo e na frente do palco.
Num presente contínuo
-acentuado pela morosidade
tensa da música eletrônica (interrompida aqui e ali por citações de
música concreta e do "Quarteto
para o Fim do Tempo", de Messiaen)-, a maleabilidade é de lei.
As cidades se mostram em arqueamentos e acentos dos corpos,
que a atravessam todo dia.
A identificação da vida, a nossa
própria vida, com a existência
aberratória e ordinária das cidades, em "Metapolis", provoca
uma experimentação sensorial
inédita. Na criação de mundos intensos e fissurados, o que se mostra ao mesmo tempo oculta algo
de que se tem apenas vaga percepção. O quanto esse segredo, afinal,
há de criar sentidos novos, ou o
quanto é nuvem de fumaça (nuvem de implosões, para ser preciso) não chega a ser decidido num
espetáculo que espanta mais do
que encanta. O que não deixa de
ser uma tese sobre as cidades.
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