São Paulo, sábado, 20 de outubro de 2001

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Leia trechos de "Afeganistão e Irlanda"

DA REDAÇÃO

Leia abaixo trechos de "Afeganistão e Irlanda", de Eça de Queirós, que integra a coletânea "Cartas de Inglaterra". No Brasil, o texto está nas "Obras Completas de Eça de Queirós", publicadas pela editora Nova Aguilar.

"Os ingleses estão experimentando, no seu atribulado império da Índia, a verdade desse humorístico lugar-comum do século 18: "A história é uma velhota que se repete sem cessar".
O fado ou a providência, ou a entidade qualquer que de lá de cima dirigiu os episódios da campanha do Afeganistão em 1847, está fazendo simplesmente uma cópia servil, revelando assim uma imaginação exausta.
Em 1847 os ingleses, "por uma razão de Estado, uma necessidade de fronteiras científicas, a segurança do império, uma barreira ao domínio russo da Ásia..." e outras coisas vagas que os políticos da Índia rosnam sombriamente, retorcendo os bigodes, invadem o Afeganistão, e aí vão aniquilando tribos seculares, desmantelando vilas, assolando searas e vinhas: apossam-se, por fim, da santa cidade de Cabul; sacodem do serralho um velho emir apavorado; colocam lá outro de raça mais submissa, que já trazem preparado nas bagagens, com escravas e tapetes; e, logo que os correspondentes dos jornais têm telegrafado a vitória, o Exército, acampando à beira dos arroios e nos vergéis de Cabul, desaperta o correame e fuma o cachimbo da paz. Assim é exatamente em 1880.
No nosso tempo, como em 1847, chefes enérgicos vão percorrendo o território e, com os grandes nomes de pátria e de religião, pregam a "guerra santa": as tribos reúnem-se, as famílias feudais correm com os seus troços de cavalaria, príncipes rivais juntam-se no ódio hereditário contra o estrangeiro, o homem vermelho, e em pouco tempo é todo um rebrilhar de fogos de acampamento nos altos das serranias, dominando os desfiladeiros que são o caminho, a estrada da Índia. E, quando por ali aparecer, enfim, o grosso do Exército inglês, à volta de Cabul, atravancado de artilharia, escoando-se espessamente, por entre as gargantas das serras, no leito seco das torrentes, com as suas longas caravanas de camelos, aquela massa bárbara rola-lhe em cima e aniquila-o. (...)"
"Uma manhã avista-se Candahar ou Gasnat -e, num momento, é aniquilado, disperso no pó da planície o pobre Exército afegão, com as suas cimitarras de melodrama e as suas veneráveis colubrinas, do modelo das que outrora fizeram fogo em Diu. (...)"
"(...) No entanto, em desfiladeiro e monte, milhares de homens que, ou defendiam a pátria ou morriam pela fronteira científica, lá ficam, pasto de corvos -o que não é, no Afeganistão, uma respeitável imagem retórica: aí, são os corvos que nas cidades fazem a limpeza das ruas, comendo as imundícies, e em campos de batalha purificam o ar, devorando os restos das derrotas. E de tanto sangue, tanto luto, que resta por fim? Uma canção patriótica, uma estampa idiota nas salas de jantar, uma linha de prosa numa página de crônica. (...)"



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