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OPINIÃO
Retrato do profanador máximo
Em artigo para a Folha, o argentino Alan Pauls traça perfil do colombiano Fernando Vallejo, que se "candidatou" a papa e causou polêmica em festival literário
ALAN PAULS
ESPECIAL PARA A FOLHA
Algumas semanas atrás,
a Universidade Nacional da Colômbia fez
uma homenagem a Fernando
Vallejo, dando a ele um doutorado honoris causa. Áspero ex-aluno da casa, o escritor se
manteve fiel a seu costume e
aproveitou a pompa e a multidão convocadas para a cerimônia para lançar outro dos coquetéis molotov com os quais
regularmente revitaliza a relação que mantém com sua pátria. "Falta um papa católico",
receitou desde o pódio.
Gargalhadas, aplausos. Vallejo -que, quando lê, não suporta
que o interrompam, nem sequer para festejá-lo- se apressou e mergulhou o punhal um
pouco mais fundo. "Mas,
quem?", perguntou-se em voz
alta. Silêncio no auditório: saliva, temor e tremor. E então,
com uma ênfase séria, crédula,
como a de um monólogo shakespeariano de jardim de infância, ele mesmo respondeu:
"Eu!".
A candidatura não vingou: o
furor anticatólico de Vallejo é
célebre, cem vezes mais célebre
que os livros extraordinários
nos quais costuma irromper,
arbitrário como uma chicotada
obscena. Mas deu lugar a estratégias mais acessíveis e sem dúvida mais eficazes: por exemplo, subornar o chefe de conclaves do Vaticano para que votem
em um papa colombiano. Foi
uma "gag", uma pequena grosseria satírica, um desses números de terrorismo antipátria
dos quais Vallejo costuma se
gabar no mundo todo, mas que
nunca executa com tanto êxito
-arrebatado pelo mesmo e tenaz "sadismo de vítima" que
Thomas Bernhard sofria e punha em prática com a Áustria-
como quando pisa no solo de
seu país, do qual se autoexilou
há cerca de 30 anos.
É possível acompanhar o discurso de Vallejo on-line, mas
receio que, transmitida pelo
YouTube, sua capacidade de
perturbar saia empobrecida.
Minha vez de vê-lo ao vivo
aconteceu no Festival Hay de
Cartagena, em janeiro, em pé,
sozinho no meio do palco avassalador do teatro Heredia, com
750 pessoas sentadas na ponta
dos assentos e outras 300 do lado de fora, sem ingressos,
ameaçando derrubar as portas
do teatro se não as abrissem, e
devo admitir que foi uma experiência e tanto. Falou contra a
decadência da Colômbia, contra o papa, contra a corrupção
da classe política colombiana,
contra o narcotráfico, contra o
papa, contra a guerrilha, contra
os velhos, contra o papa, contra
os Estados Unidos, contra o estado da língua na América Latina, contra o papa... Os temas
eram apenas a agenda de qualquer sociedade latino-americana em carne viva. Já o estilo em
que os representava era tudo.
Ao vivo, Vallejo não fala, não
improvisa, não é um orador. Lê.
Mais que ler, na realidade, agarra com olhos e dentes as páginas que escreveu, até que as
termina, as extenua, as esvazia.
A leitura pública é, nele, uma
variante da posse. Vallejo é o
que lê: uma torrente aluvial, arrasadora, sem pontos, sem vírgulas nem separação de parágrafos, que vocifera com a sua
voz opaca e a obstinação de um
demente. Um desses dilúvios
bíblicos com os quais frequentemente termina seus romances ("A Virgem dos Sicarios",
"O Despenhadeiro", ambos
lançados no Brasil). Nunca olha
para o público. Nem sequer parece registrar sua presença.
Blasfema, perita na imprecação, na injúria e no escárnio, semeada de digressões macabras
à moda de Jonathan Swift, autor com quem compartilha toda espécie de distopias misantrópicas, a palavra de Vallejo é
de alguma maneira como a de
Deus -em quem cospe, é claro-, mas ao revés, em versão
subalterna, a versão de quem
não tem nada a perder. Delírio
de súdito ou de órfão, é uma palavra direta, crua, repetitiva:
como as declarações das heroínas da tragédia grega, não tem
destinatário e está condenada a
ecoar, solitária, entre as quatro
paredes do mundo.
Em "La Desazón Suprema", o
retrato filmado que Luis Ospina fez dele em 2003, Vallejo
aparece descontraído e sorridente, de bom humor, como se
estivesse satisfeito, respondendo perguntas com sensatez, comemorando um aniversário
agradável e até mesmo olhando
com uma dose de nostalgia enternecida a casa familiar que,
em "O Despenhadeiro", descreve como um pesadelo ou um túmulo. Mas basta que uma rádio
o faça opinar sobre o político
colombiano que propõe sequestrar e incinerar a edição
inteira de "A Virgem dos Sicarios" para que o monstro vomite suas labaredas de ira.
O que há de surpreendente
nesse contraste? Vallejo sempre foi o Incrível Hulk da cultura latino-americana. O desaforado que exalta o crime em ficções brutais e cultiva o hobby
de chamar o presidente da Colômbia de "filho da puta" é o
mesmo moralista da língua que
estreia nas letras escrevendo
uma "gramática da linguagem
literária", "Logoi", imenso arquivo de citações, figuras e truques retóricos escavados da literatura ocidental que compilou, afirma, "para aprender a
escrever", e cuja tese borgeana
estabelece que tudo já está escrito, que a literatura é "ready-made", que a originalidade não
existe e que, portanto, qualquer
pessoa pode ser escritor. O selvagem que advoga a morte dos
pobres e abomina a reprodução
da espécie é o mesmo biólogo
que uma vez redigiu um ensaio
refutando Darwin, o amante do
reino animal que doa os
US$100 mil do prêmio Rómulo
Gallegos à Sociedade Protetora
dos Animais da Venezuela e o
dono derretido de amor que escova os dentes de sua cadela
diante da câmera de Ospina.
Não existem dois Vallejos:
existe um, e é esse que há um
quarto de século faz tudo o que
faz e escreve tudo o que escreve
em seu próprio nome, dizendo
eu, fazendo do eu ao mesmo
tempo o altar e o inferno onde
desfruta daquilo que o aborrece: o paraíso da abjeção. Vallejo
é aquele que já fez jus a um nome elevado e maldito: um profanador. Ou seja: um homem
-talvez o último- dotado de
um altíssimo senso do sagrado.
ALAN PAULS é escritor argentino, autor de "O
Passado", entre outros.
Tradução de CLARA ALLAIN
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