São Paulo, terça-feira, 20 de outubro de 2009

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OPINIÃO

Retrato do profanador máximo

Em artigo para a Folha, o argentino Alan Pauls traça perfil do colombiano Fernando Vallejo, que se "candidatou" a papa e causou polêmica em festival literário

ALAN PAULS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Algumas semanas atrás, a Universidade Nacional da Colômbia fez uma homenagem a Fernando Vallejo, dando a ele um doutorado honoris causa. Áspero ex-aluno da casa, o escritor se manteve fiel a seu costume e aproveitou a pompa e a multidão convocadas para a cerimônia para lançar outro dos coquetéis molotov com os quais regularmente revitaliza a relação que mantém com sua pátria. "Falta um papa católico", receitou desde o pódio.
Gargalhadas, aplausos. Vallejo -que, quando lê, não suporta que o interrompam, nem sequer para festejá-lo- se apressou e mergulhou o punhal um pouco mais fundo. "Mas, quem?", perguntou-se em voz alta. Silêncio no auditório: saliva, temor e tremor. E então, com uma ênfase séria, crédula, como a de um monólogo shakespeariano de jardim de infância, ele mesmo respondeu: "Eu!".
A candidatura não vingou: o furor anticatólico de Vallejo é célebre, cem vezes mais célebre que os livros extraordinários nos quais costuma irromper, arbitrário como uma chicotada obscena. Mas deu lugar a estratégias mais acessíveis e sem dúvida mais eficazes: por exemplo, subornar o chefe de conclaves do Vaticano para que votem em um papa colombiano. Foi uma "gag", uma pequena grosseria satírica, um desses números de terrorismo antipátria dos quais Vallejo costuma se gabar no mundo todo, mas que nunca executa com tanto êxito -arrebatado pelo mesmo e tenaz "sadismo de vítima" que Thomas Bernhard sofria e punha em prática com a Áustria- como quando pisa no solo de seu país, do qual se autoexilou há cerca de 30 anos.
É possível acompanhar o discurso de Vallejo on-line, mas receio que, transmitida pelo YouTube, sua capacidade de perturbar saia empobrecida.
Minha vez de vê-lo ao vivo aconteceu no Festival Hay de Cartagena, em janeiro, em pé, sozinho no meio do palco avassalador do teatro Heredia, com 750 pessoas sentadas na ponta dos assentos e outras 300 do lado de fora, sem ingressos, ameaçando derrubar as portas do teatro se não as abrissem, e devo admitir que foi uma experiência e tanto. Falou contra a decadência da Colômbia, contra o papa, contra a corrupção da classe política colombiana, contra o narcotráfico, contra o papa, contra a guerrilha, contra os velhos, contra o papa, contra os Estados Unidos, contra o estado da língua na América Latina, contra o papa... Os temas eram apenas a agenda de qualquer sociedade latino-americana em carne viva. Já o estilo em que os representava era tudo.
Ao vivo, Vallejo não fala, não improvisa, não é um orador. Lê.
Mais que ler, na realidade, agarra com olhos e dentes as páginas que escreveu, até que as termina, as extenua, as esvazia.
A leitura pública é, nele, uma variante da posse. Vallejo é o que lê: uma torrente aluvial, arrasadora, sem pontos, sem vírgulas nem separação de parágrafos, que vocifera com a sua voz opaca e a obstinação de um demente. Um desses dilúvios bíblicos com os quais frequentemente termina seus romances ("A Virgem dos Sicarios", "O Despenhadeiro", ambos lançados no Brasil). Nunca olha para o público. Nem sequer parece registrar sua presença. Blasfema, perita na imprecação, na injúria e no escárnio, semeada de digressões macabras à moda de Jonathan Swift, autor com quem compartilha toda espécie de distopias misantrópicas, a palavra de Vallejo é de alguma maneira como a de Deus -em quem cospe, é claro-, mas ao revés, em versão subalterna, a versão de quem não tem nada a perder. Delírio de súdito ou de órfão, é uma palavra direta, crua, repetitiva: como as declarações das heroínas da tragédia grega, não tem destinatário e está condenada a ecoar, solitária, entre as quatro paredes do mundo.
Em "La Desazón Suprema", o retrato filmado que Luis Ospina fez dele em 2003, Vallejo aparece descontraído e sorridente, de bom humor, como se estivesse satisfeito, respondendo perguntas com sensatez, comemorando um aniversário agradável e até mesmo olhando com uma dose de nostalgia enternecida a casa familiar que, em "O Despenhadeiro", descreve como um pesadelo ou um túmulo. Mas basta que uma rádio o faça opinar sobre o político colombiano que propõe sequestrar e incinerar a edição inteira de "A Virgem dos Sicarios" para que o monstro vomite suas labaredas de ira.
O que há de surpreendente nesse contraste? Vallejo sempre foi o Incrível Hulk da cultura latino-americana. O desaforado que exalta o crime em ficções brutais e cultiva o hobby de chamar o presidente da Colômbia de "filho da puta" é o mesmo moralista da língua que estreia nas letras escrevendo uma "gramática da linguagem literária", "Logoi", imenso arquivo de citações, figuras e truques retóricos escavados da literatura ocidental que compilou, afirma, "para aprender a escrever", e cuja tese borgeana estabelece que tudo já está escrito, que a literatura é "ready-made", que a originalidade não existe e que, portanto, qualquer pessoa pode ser escritor. O selvagem que advoga a morte dos pobres e abomina a reprodução da espécie é o mesmo biólogo que uma vez redigiu um ensaio refutando Darwin, o amante do reino animal que doa os US$100 mil do prêmio Rómulo Gallegos à Sociedade Protetora dos Animais da Venezuela e o dono derretido de amor que escova os dentes de sua cadela diante da câmera de Ospina.
Não existem dois Vallejos: existe um, e é esse que há um quarto de século faz tudo o que faz e escreve tudo o que escreve em seu próprio nome, dizendo eu, fazendo do eu ao mesmo tempo o altar e o inferno onde desfruta daquilo que o aborrece: o paraíso da abjeção. Vallejo é aquele que já fez jus a um nome elevado e maldito: um profanador. Ou seja: um homem -talvez o último- dotado de um altíssimo senso do sagrado.


ALAN PAULS é escritor argentino, autor de "O Passado", entre outros.

Tradução de CLARA ALLAIN


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