São Paulo, quinta-feira, 20 de novembro de 2008

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COMIDA

chefs na floresta

O mais premiado chef brasileiro, Alex Atala acompanha dois mestres da gastronomia espanhola, Ferran Adrià e Juan Mari Arzak, em viagem pelos sabores da Amazônia

ALEX ATALA
ESPECIAL PARA A FOLHA

A minha cozinha ganhou mais sentido depois de conhecer a cozinha espanhola. Eu queria trazer os chefs de lá para a minha realidade, deixá-los imersos não só nos sabores, mas no conjunto dessa aura brasileira.
Não posso me esquecer do momento em que Ferran Adrià e Juan Mari Arzak desembarcaram no Brasil. Comecei a viver um sonho. Oscilei entre a profunda euforia, o arrependimento e o medo, mas as coisas foram transcorrendo bem, e tudo o que podia ser trágico milagrosamente dava certo. Fechei o restaurante D.O.M.
por um dia. Todos os meus ídolos estavam sentados ali, na mesma hora, para comer a mesma coisa. Foi um dia muito tenso (tomei três calmantes).
Disse que eu queria que levassem daqui o Brasil, mostrar sabores excepcionais, e não fazer um jantar de alta gastronomia.
Usei o turu, um fruto do mar de mangue, com um aspecto esquisito, como uma lombriga de 60 cm. Abri um tronco que trouxe da Amazônia, onde tinha um turu -eles se amontoaram para tirar foto, queriam pegar, queriam comer direto do tronco.
Também usei uma fruta chamada cagaita e que o nome é engraçadíssimo em português e, em espanhol, mais ainda. Tinha piada e bom humor no ar.
A equipe do D.O.M conseguiu a superação. Foi o meu jantar do século, talvez tenha sido o momento mais alto da minha carreira. E, quando você chega nesse ponto, pensa: "E agora?".

Rumo à Amazônia
Acabado o evento, parti para o momento mais sonhado -entrar num avião com Ferran e Juan Mari para ir à Amazônia.
Você se desliga do papel de chef, assume sua personalidade real. Éramos três apaixonados por cozinha convivendo quatro dias intensamente.
A relação de Ferran e Juan Mari é divertidíssima, eles discutem, brigam e depois dão risada. Parecem os irmãos Marx. Quando o Juan Mari quer irritar o Ferran, diz: "Senhor da cozinha molecular". Na chegada a Belém, o Ferran olhava pela janela do avião: "Achei que estava indo para o meio da Amazônia". E eu: "E você está".
Depois de uma recepção cheia de ingredientes nativos no hotel, fomos visitar o Paulo Martins, do restaurante Lá em Casa, que está muito doente, quase não fala. Expliquei que ele era um mestre para mim. Talvez tenha sido o momento mais emocionante da viagem. Saímos chorando. "Quanta energia tem neste lugar, eu preciso disso", disse o Ferran.
Por alguns momentos, ele foi o Fernando Adrià da Costa.
Fomos jantar no Lá em Casa e comemos extremamente bem. A cabeça desses caras começou a dar um nó: por que uma farinha é grossa e outra fina? Por que uma é amarela e outra não? Por que frutas, peixes, folhas de mandioca...?
Levantamos muito cedo no dia seguinte para acompanhar o desembarque do açaí e a chegada dos peixes no mercado Ver-o-Peso. O Ferran, quando viu o mercado, onde são comercializadas 30 toneladas de açaí por dia, começou a pirar.
Também mostrei os restaurantes populares e a cultura do açaí. Pedi açaí branco, açaí clássico, peixe frito e tapioca, que é como o caboclo come. "Isso aqui é um McDonald's", falou o Ferran, olhando para aquele monte de barracas.
Saímos da "praça de alimentação" e passamos pelo mercado de castanha. Ferran começou a comer castanha-do-pará e fazer anotações. Me assustou o quanto é intensa a relação deles com o produto, como eles são disciplinados. Anotavam tudo, textura, acidez, potência de aroma...
Fomos então ao desembarque dos peixes -uma profusão de peixes, caranguejos e camarões. Depois, as frutas. Os dois ficaram lambuzados. No mercado de ervas e verduras, outra enxurrada. Começaram a entrar em transe.

Como criança
Pegamos um barco em direção a uma casa de farinha. Navegamos por uma hora no rio Amazonas e fizemos uma caminhada no meio da selva. No caminho, uma árvore de taperebá carregada. Também vimos formigas gigantes, trilhas de veados, quatis. Quando começamos a ver o processo de fazer a farinha, seu Juan Mari Arzak, com seus 66 anos, não conseguiu mais acompanhar a viagem. Existia um claro excesso de informação. Ficou como uma criança, sentou-se no chão, pegou o seu caderno e ficou desenhando, escrevendo, tentando compreender.
No dia seguinte, fomos à ilha Mexiana, no arquipélago de Marajó. Era um momento de descanso. Juan Mari perguntou: "Aqui se dorme?".
Chegou ao fim, agora vamos embora. Queria voltar para casa, para o meu restaurante, para a minha família.
Vivi intensamente com esses caras e acho que eles servem como exemplo não só de cozinha e de disciplina mas também por serem grandes homens e se colocarem na posição de aprendizes. Mais: da disponibilidade em ajudar o Brasil, tentar plantar na cabeça das pessoas a necessidade de conservar o nosso ambiente por meio da gastronomia.
Acho que no futuro veremos mais ingredientes brasileiros nas grandes mesas do mundo.
Espero que eles nos contaminem com profissionalismo, simplicidade e honestidade.

ALEX ATALA é chef-proprietário do restaurante D.O.M. e concedeu este depoimento à repórter LUIZA FECAROTTA.

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