São Paulo, sábado, 20 de novembro de 2010

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros

CRÍTICA ROMANCE

Adolfo Bioy Casares confirma maestria em relato sombrio

Na alucinada história de "Diário da Guerra do Porco", os idosos são perseguidos e espancados até a morte


UM ROMANCE SOBRE O TEMPO, O ENVELHECIMENTO, O DECLÍNIO SEXUAL, A INILUDÍVEL MARCHA PARA A DECREPITUDE, NARRADO À MANEIRA DE UM SONHO RUIM


LAURA JANINA HOSIASSON
ESPECIAL PARA A FOLHA

Obra de mão de mestre, "Diário da Guerra do Porco" mostra sua força desde a primeira frase.
Implacável, irônico, mordaz, sutil, este sonho que é também um pesadelo urdido como uma teia, na qual narrador, personagens e leitor irão sendo sugados num movimento vertiginoso, de redemoinho, em direção às profundezas do ser. Adolfo Bioy Casares (1914-1999) confessou certa vez que este livro tinha operado nele uma espécie de psicanálise herética. Tinha 55 anos na época de sua escrita e se sentia envelhecer.
Estava um dia na confeitaria El Molino, em Buenos Aires, quando viu um sujeito com o cabelo tingido.
Teve então a ideia de um ensaio sobre as múltiplas formas com que os homens tentam protelar a passagem do tempo. O ensaio concluía que, na realidade, nada pode ser feito contra a iminência da velhice.
Mas logo depois, achou que seria mais adequado escrever uma ficção que imitasse os filmes cômicos dos anos 20 e começou a compor uma história em que velhos corpulentos, embora frágeis, seriam perseguidos por jovens atléticos e violentos, até que percebeu que o tema permitia um tratamento menos superficial: "Mas para isso tinha que escrever um romance. Um romance em que coubesse a tristeza. Foi o que tentei fazer".

CLIMA FASCISTA
A bela e mítica Buenos Aires transforma-se em cenário sinistro, lugar em que se irá tramando esta história em que jovens embrutecidos correm atrás de idosos para vexá-los e eliminá-los.
O clima fascista dos grupos que perseguem idosos para espancá-los até a morte antevê a brutalidade da ditadura militar que se abateria sobre a Argentina, e serve também de mordaz instrumento para penetrar no lado escuro e perverso da alma humana em qualquer circunstância adversa.
Dentre os romances de Adolfo Bioy Casares, talvez seja o "Diário da Guerra do Porco" o mais sombrio.
Por um lado, é possível ligá-lo com o conto "A Festa do Monstro", escrito a quatro mãos com Jorge Luis Borges (1899-1986) na década de 40, mas também se vincula estreitamente aos fantasmas pessoais que assombraram sempre o escritor.
Bioy Casares imprime um estilo inconfundível à sua prosa e ao modo de enlaçar realidade e fantasia.
A princípio, a forma do livro, composto de 49 capítulos, é a do diário aludido no título, que cobre pouco mais de uma semana, num ano da década de 60.
Mas isso somente a princípio, já que, como grande parte das formas aparentes neste livro, o diário também se desmancha para terminar no que o leitor não sabe se deve atribuir a um sonho ou a um delírio de morte.
Há aqui, como quase sempre em Bioy Casares, um não desfecho, um inacabamento que remete justamente à proposta do diário.

INDEFINIÇÃO TEMPORAL
O mecanismo do gênero vai sendo traído pela radical indefinição de tempos que pontua o andamento da história, até a alusão a "poucos dias depois", na abertura de um dos capítulos finais.
A utilização da terceira pessoa do singular instala uma voz entre o leitor e o autor do diário que irá romper também a ilusão de autorreferência, embora o estilo indireto livre dê a sensação de um protagonista, Isidoro Vidal, refletindo sobre si mesmo e sobre as circunstâncias à sua volta.
O modo de desencadeamento da alucinada trama aproxima-se de um realismo que pode confundir os dois termos da equação literária aqui postos: uma suposta "verdade" dos fatos e uma conduta da narrativa.
O leitor depara-se, assim, com uma história que em definitiva não é referencial, e que no entanto parece obediente aos imperativos veristas da narrativa tradicional. Um romance sobre o tempo, sobre o envelhecimento, o declínio sexual, a iniludível marcha para a decrepitude, narrado à maneira de um sonho ruim.
Em paralelo a isso tudo, a ilusão romântica sempre mantida como um horizonte possível? Sonhado? O estilo deliberadamente inacabado do romance contribui para sua rica indefinição e complexidade.


LAURA JANINA HOSIASSON é professora de literatura hispano-americana na USP

DIÁRIO DA GUERRA DO PORCO

AUTOR Adolfo Bioy Casares
EDITORA Cosac Naify
TRADUÇÃO José Geraldo Couto
QUANTO R$ 55 (208 págs.)
AVALIAÇÃO bom


Texto Anterior: Saiba mais: Hoje, imagens são vistas como espetáculo
Próximo Texto: Crítica/Romance: Thomas Pynchon cria "bad trip" com policial psicodélico
Índice | Comunicar Erros



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.