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São Paulo, sábado, 20 de dezembro de 2003

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"COMO É"

Obra de 1961 do autor irlandês, uma história ordenada em três partes, recebe tradução inédita em português

Beckett narra a vida no limbo como ela é

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
ESPECIAL PARA A FOLHA

As narrativas beckettianas abandonaram cedo os trilhos da forma clássica para experimentar terreno próprio. Menos festejados do que suas peças, "Molloy", "Malone Morre" e "O Inominável", três romances escritos em francês na Paris do pós-guerra, teriam bastado para garantir a Samuel Beckett (1906-89) um papel central no modernismo europeu, farto das fatias de vida.
Deles, emerge um narrador irônico, despossuído e solitário, perguntando-se por seu lugar, desmentindo-se a cada passo, errante a contragosto e a duras penas, mas incapaz de se calar ou sossegar. A instabilidade de sua voz, inconfundível, é a própria literatura de nosso tempo.
Por volta de dez anos separam essa trilogia, concebida no final dos anos 40, da escrita de "Como É" ("Comment C'Est", Minuit, 1961), que agora chega ao leitor brasileiro em cuidada tradução de Ana Helena Souza, seguindo a versão em inglês do próprio Beckett ("How It Is", Grove Press, 1964). A disposição autoproclamada desde o título pelo simples -narrar como é, sem mais- encobre uma importante inflexão na prosa do autor de Godot, troca de impasses para seguir adiante.
Depois da dissolução de enredo e personagem no torvelinho verbal que encerrava "O Inominável", deparamo-nos aqui com uma história ordenada, em três partes, pretensamente correspondendo a começo, meio e fim de uma biografia sem ornamentos. O que o livro promete é contar a vida do narrador antes do encontro com Pim, sua convivência com Pim, sua sorte depois da partida de Pim.
Não resta dúvida, tampouco, de que se trata de uma biografia de uma criatura beckettiana. Estão lá, mais uma vez, a compulsão narrativa, a necessidade da viagem, os pares indissolúveis formados pelos personagens, alternando-se nos papéis de carrasco e vítima, as tentativas de comunicação como formas simbólicas e efetivas de tortura, o sofrimento físico no primeiro plano. Mas o "como" faz aqui toda a diferença.
Mais do que a estranheza do cotidiano do narrador na primeira parte, criatura rastejante que se move num mundo de lama, um limbo dantesco, em direção ao seu par distante, na companhia de um saco de provisões enlatadas e visitado por visões intermitentes, imagens de uma outra existência perdida, lá em cima, no mundo das luzes, o que nos choca de imediato é a novidade do ritmo ofegante e entrecortado da narrativa.
O narrador protagonista da trilogia, já pouco confiável, passa agora a alimentar-se de citações -"minha vida como a ouço", constituindo-se a partir de uma fala alheia cuja origem desconhece. O registro desta voz, estranha e mediada, tampouco é familiar. O texto evolui por segmentos verbais brevíssimos que, por sua vez, são reagrupados em blocos apenas remotamente semelhantes aos parágrafos. A ausência de pontuação e o caráter lacunar das frases confiam aos acentos métricos a tarefa de circunscrever minimamente a pulsação do texto, elíptico e ambíguo. O papel do leitor, espelhando o do narrador-ouvinte, é decisivo neste quebra-cabeça semântico, casando os olhos que lêem com a fala, a escrita com a escuta silenciosa, a prosa com a poesia.
Num universo sombrio, distópico, em que a queda orgulhosa do Lúcifer miltoniano e o inferno de Dante são referências constantes, o humor e o lirismo têm, paradoxalmente, um papel importante. As ironias se multiplicam no texto. A primeira e maior delas é a de um narrador que parte da mobilidade e da mudez para o imobilismo e a fala dubitativa, passando pela fase do convívio com seu duplo, Pim, só conquista uma voz extraindo-a a fórceps do outro, tomando-lhe o lugar e oferecendo-lhe em troca o seu.
A percepção tardia desta alternância abala a certeza da vida em três movimentos (a caminho, acompanhado, abandonado), inserindo-a numa série infinita. Abala, por extensão, a serenidade do narrador, confundindo a ordem segura do plano narrativo. A percepção de que há "algo errado aí" cresce, instaurando novo labirinto de vozes. De aporia em aporia, em Beckett e na narrativa contemporânea, todos os caminhos levam a Babel. Até prova em contrário.


Fábio de Souza Andrade é professor de teoria literária na USP, autor de "Samuel Beckett: O Silêncio Possível" (Ateliê, 2001) e "O Engenheiro Noturno: A Lírica Final de Jorge de Lima" (Edusp, 1997).

Como É
    
Autor: Samuel Beckett
Tradução: Ana Helena Souza
Editora: Iluminuras
Quanto: R$ 35 (192 págs.).


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