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"COMO É"
Obra de 1961 do autor irlandês, uma história ordenada em três partes, recebe tradução inédita em português
Beckett narra a vida no limbo como ela é
FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
ESPECIAL PARA A FOLHA
As narrativas beckettianas abandonaram cedo os
trilhos da forma clássica para experimentar terreno próprio. Menos festejados do que suas peças,
"Molloy", "Malone Morre" e "O
Inominável", três romances escritos em francês na Paris do pós-guerra, teriam bastado para garantir a Samuel Beckett (1906-89)
um papel central no modernismo
europeu, farto das fatias de vida.
Deles, emerge um narrador irônico, despossuído e solitário, perguntando-se por seu lugar, desmentindo-se a cada passo, errante
a contragosto e a duras penas,
mas incapaz de se calar ou sossegar. A instabilidade de sua voz, inconfundível, é a própria literatura
de nosso tempo.
Por volta de dez anos separam
essa trilogia, concebida no final
dos anos 40, da escrita de "Como
É" ("Comment C'Est", Minuit,
1961), que agora chega ao leitor
brasileiro em cuidada tradução de
Ana Helena Souza, seguindo a
versão em inglês do próprio Beckett ("How It Is", Grove Press,
1964). A disposição autoproclamada desde o título pelo simples
-narrar como é, sem mais- encobre uma importante inflexão
na prosa do autor de Godot, troca
de impasses para seguir adiante.
Depois da dissolução de enredo
e personagem no torvelinho verbal que encerrava "O Inominável", deparamo-nos aqui com
uma história ordenada, em três
partes, pretensamente correspondendo a começo, meio e fim de
uma biografia sem ornamentos.
O que o livro promete é contar a
vida do narrador antes do encontro com Pim, sua convivência
com Pim, sua sorte depois da partida de Pim.
Não resta dúvida, tampouco, de
que se trata de uma biografia de
uma criatura beckettiana. Estão
lá, mais uma vez, a compulsão
narrativa, a necessidade da viagem, os pares indissolúveis formados pelos personagens, alternando-se nos papéis de carrasco e
vítima, as tentativas de comunicação como formas simbólicas e
efetivas de tortura, o sofrimento
físico no primeiro plano. Mas o
"como" faz aqui toda a diferença.
Mais do que a estranheza do cotidiano do narrador na primeira
parte, criatura rastejante que se
move num mundo de lama, um
limbo dantesco, em direção ao
seu par distante, na companhia de
um saco de provisões enlatadas e
visitado por visões intermitentes,
imagens de uma outra existência
perdida, lá em cima, no mundo
das luzes, o que nos choca de imediato é a novidade do ritmo ofegante e entrecortado da narrativa.
O narrador protagonista da trilogia, já pouco confiável, passa
agora a alimentar-se de citações
-"minha vida como a ouço",
constituindo-se a partir de uma
fala alheia cuja origem desconhece. O registro desta voz, estranha e
mediada, tampouco é familiar. O
texto evolui por segmentos verbais brevíssimos que, por sua vez,
são reagrupados em blocos apenas remotamente semelhantes
aos parágrafos. A ausência de
pontuação e o caráter lacunar das
frases confiam aos acentos métricos a tarefa de circunscrever minimamente a pulsação do texto,
elíptico e ambíguo. O papel do leitor, espelhando o do narrador-ouvinte, é decisivo neste quebra-cabeça semântico, casando os
olhos que lêem com a fala, a escrita com a escuta silenciosa, a prosa
com a poesia.
Num universo sombrio, distópico, em que a queda orgulhosa
do Lúcifer miltoniano e o inferno
de Dante são referências constantes, o humor e o lirismo têm, paradoxalmente, um papel importante. As ironias se multiplicam no
texto. A primeira e maior delas é a
de um narrador que parte da mobilidade e da mudez para o imobilismo e a fala dubitativa, passando
pela fase do convívio com seu duplo, Pim, só conquista uma voz
extraindo-a a fórceps do outro,
tomando-lhe o lugar e oferecendo-lhe em troca o seu.
A percepção tardia desta alternância abala a certeza da vida em
três movimentos (a caminho,
acompanhado, abandonado), inserindo-a numa série infinita.
Abala, por extensão, a serenidade
do narrador, confundindo a ordem segura do plano narrativo. A
percepção de que há "algo errado
aí" cresce, instaurando novo labirinto de vozes. De aporia em aporia, em Beckett e na narrativa contemporânea, todos os caminhos
levam a Babel. Até prova em contrário.
Fábio de Souza Andrade é professor
de teoria literária na USP, autor de "Samuel Beckett: O Silêncio Possível" (Ateliê, 2001) e "O Engenheiro Noturno: A Lírica Final de Jorge de Lima" (Edusp,
1997).
Como É
Autor: Samuel Beckett
Tradução: Ana Helena Souza
Editora: Iluminuras
Quanto: R$ 35 (192 págs.).
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