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São Paulo, sábado, 20 de dezembro de 2003

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"SER LONGE"

Volume de estréia na poesia de Fernando Moreira Salles está atravessado pela questão da finitude

Versos encontram transitório habitável

NELSON ASCHER
COLUNISTA DA FOLHA, EM PARIS

O passado, escreve L.P. Hartley em "O Mensageiro" ("The Go-Between"), é um outro país. Traduzindo igualmente, em termos de espaço, o tempo, Fernando Moreira Salles afirma em "Memória", de cujo segundo verso provém seu título, que "Lembrar/ é ser longe".
Ao sugerir que a recordação permite-nos estarmos concomitantemente aqui, no presente, e ali, no passado, ele dá a entender um de seus objetivos: recuperar o que passou. Os demais poemas, porém, transformam essa esperança numa indagação, evocando, por meio da distância crescente entre o agora e o antes, a transitoriedade. O papel do verso torna-se o de uma "estrela extinta/ luz/ que não chega a ti", estrela cuja luminosidade ausente lembra que "o que resta/ é só instante".
Descartada a possibilidade de que o tempo se interrompa, "Ser Longe" busca, num tom menos de nostalgia que de angústia, reconstruir alguns poucos momentos discretos nos quais, quem sabe, oculta-se um vestígio de sentido. O temor do poeta decorre de não estar certo se quer descobrir ou não algo que não passará de um novo "memento mori": "Mais medo, aquele/de ainda lembrar".
Ainda assim, sua indagação não se dirige ao vazio. A divindade que aparece fugazmente em alguns dos poemas parece ser mais do que interjeição ou figura de linguagem. O livro nada tem de devocional ou místico e, da divindade questionada pelo autor, não se espera resposta alguma.
Seus textos, afeitos que são a um vocabulário modernista e recorrendo a justaposições inesperadas, nem por isso prescindem de uma sintaxe trabalhada, combinação esta que pode bem ter sido aprendida com Ungaretti. Sua metáfora recorrente é o pássaro. Encontrando na fugacidade do vôo a (des)materialização do efêmero, ele procura se confraternizar com tal imagem: "passarinho/ irmão de pena/ que leva o vento/ debaixo do braço".
Atravessado do começo ao fim pela questão da finitude, o volume chega à única inconclusão viável, qual seja, a de que não apenas se habita o transitório, como tampouco há qualquer outro espaço ou tempo habitável, porque, como Moreira Salles o diz, "não temos destino/ nem queremos chegar".


Ser Longe
    
Autor: Fernando Moreira Salles
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 26 (80 págs.)



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