São Paulo, domingo, 20 de dezembro de 2009

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Crítica/DVD/"Palavra e Utopia"

Filme de Manoel de Oliveira sobre padre Antônio Vieira segue tom político

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

O padre Antônio Vieira foi um grande pensador da língua portuguesa, sabe-se. E um grande pensador político, poderia acrescentar Manoel de Oliveira ao projetar seu "Palavra e Utopia". É um filme sobre a palavra, sem dúvida, sobre as línguas, que circulam diversas ao longo do filme, e sobre Portugal e sua pequenez em face da grandeza que projetava Vieira.
Um filme sobre a justiça, já que Vieira não apenas sabe se manifestar sobre a necessidade de servir à pátria e aturar suas ingratidões, como, sobretudo, é contra a escravidão dos negros, os atentados aos índios, as perseguições aos judeus. Por essas e outras, será alvo da Inquisição, de que o salvam a sabedoria, o charme e Roma.
De que Vieira fala Oliveira, em qual Vieira pensa? É menos o homem de talento incomum, de palavra inspirada, que visa o filme, do que o homem cuja palavra usa para o combate. Estamos, portanto, diante de Oliveira, cineasta político.
Não será absurdo pensar em um Oliveira/Vieira (um Olivieira?). Assim como o padre orador do século 17, Oliveira até hoje é mais reconhecido fora de Portugal do que dentro.
Vieira foi um homem de duas terras, Brasil e Portugal. Que eram uma, pois o Brasil pertencia ao reino. Oliveira de certa forma faz aqui um filme de homenagem ao Brasil, onde havia os índios e os negros. Onde havia, já, os oligarcas que tinham de ouvir seus sermões de cara amarrada, quando condenava a prática da escravatura, o hábito de viver sem trabalhar etc.
Tinha um pé em cada borda do mundo: Portugal e Brasil. O oceano era seu domínio. E várias vezes Oliveira nos mostra esse movimento das águas, de um lado para outro do Atlântico, como se fosse preciso sair de Portugal para apreender o mundo.
"Palavra e Utopia" é um filme da palavra. Desde o título. Pois é com palavras que se faz política. Mas assim como existe aqui uma política dos sotaques (um falar português menos acentuado em Luís Miguel Cintra, um falar brasileiro com certa distância em Lima Duarte -o primeiro, o Vieira da idade madura, o segundo, o da velhice), existe também uma das imagens. Pois, ninguém esqueça, Oliveira é um cineasta, e não só isso: é um dos grandes.
A imagem espreita a palavra todo o tempo. Confronta-a a si mesma. A sacraliza. Como a música de que fala Vieira, purifica. Mas também pode servir de moldura para que melhor se escute a palavra. E a de Vieira dói. Ela opõe à palavra do poder o poder da palavra em liberdade. À Inquisição, a independência. Esse é o Vieira que apaixona e inspira Oliveira. Ao qual este grande cineasta político não homenageia: o que faz é sugerir Vieira como intelectual, homem e caráter exemplar.


PALAVRA E UTOPIA Distribuidora: Versátil
Quanto: R$ 40 (em média)
Classificação: livre
Avaliação: ótimo


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