São Paulo, domingo, 20 de dezembro de 2009

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

BIA ABRAMO

Máquina de fazer doidos



A televisão serve à pedagogia do consumo; no tempo que sobra, dá para fazer jornalismo ou entretenimento

O TAXISTA , aflito, estava com pressa de me levar e de chegar logo em casa. "A menina pediu um laptop da Xuxa. Ela só tem três anos e fala direitinho: "Laptop".
Acho que ela nem sabe o que é, mas viu na TV e quer de qualquer jeito."
O trânsito pesado, a tempestade prometendo enchentes e desgraça, e aquele homem com um pequeno e corriqueiro drama: "Não encontramos em duas lojas. Não dá para entender esse povo. Anuncia, anuncia e, depois, não tem nas lojas. Acaba, sei lá... Hoje, vamos ao shopping ver se achamos".
Não sei se ele conseguiu chegar em casa, apanhar a esposa e ir ao shopping. Improvável: aquela chuva que começou na hora do rush não terminou tão cedo e, como de costume, deixou a cidade encharcada, tentando se recuperar de tanta água despejada em seu solo impermeabilizado. O trânsito, como se sabe, além de qualquer limite do razoável.
Mesmo assim, ele estava disposto a enfrentar tudo isso para comprar o presente de Natal da filha -um objeto misterioso, mas com a marca do desejo inscrita. A marca Xuxa e o fato de estar na televisão bastaram para implantar uma vontade de ter, rapidamente transformada em imperativo para os pais.
A cena, apesar de sua banalidade, tem algo de assustador. É uma criança de três anos e já, digamos, sabe o que quer. E o que ela quer não é exatamente o objeto que ainda permanece desconhecido. Ela, aos três anos, sabe que é preciso pertencer e, de certa forma, já intui que a melhor maneira de ser incluída é, justamente, obter aquilo que está na televisão, cercado de cores, nomes e apelos.
É justamente a banalidade da cena que torna essa operação ainda mais maliciosa. A época das compras de Natal, bem como outras datas caras ao comércio, simplesmente acirra o que acontece todos os dias. Enquanto as crianças assistem a desenhos, engraçados ou edificantes (porque agora os há), a educação para o consumo vai se instalando de forma poderosa. E, como se sabe, é difícil competir com a eficiência desse tipo de educação.
É para isso, em última instância, que serve a televisão. Nos intervalos, é claro, sempre se pode fazer um pouco de jornalismo, um pouco de teledramaturgia, um pouco de programas educativos. Stanislaw Ponte Preta dizia, lá na pré-história, que a televisão era uma "máquina de fazer doidos". O que ele ainda não sabia (e nem poderia) era que tipo de loucura saía dessa máquina.

biabramo.tv@uol.com.br


Texto Anterior: Crítica/DVD/"Palavra e Utopia": Filme de Manoel de Oliveira sobre padre Antônio Vieira segue tom político
Próximo Texto: Novelas da semana
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.