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FERREIRA GULLAR
A falência da lei
Milícias clandestinas, formadas por policiais e bombeiros, dominam favelas e morros do Rio
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A PARTIR dos anos 70, com a introdução do tráfico de cocaína nos morros e favelas do Rio, o crime organizado começou a
instalar-se nessas comunidades.
Usando de prepotência e terror,
cooptando jovens para o tráfico, impôs seu domínio e transformou
aqueles lugares em verdadeiros santuários do crime. Mas, de algum
tempo para cá, policiais moradores
dessas comunidades também se organizaram e, por conta própria, passaram a combater os traficantes e
expulsá-los, tornando-se, desse modo, detentores de um poder ilegal.
Apesar de cobrarem da população
"taxas de segurança", contam, em
geral, com o apoio dela, que, sem alternativa, os prefere aos bandidos
drogados. Hoje, milícias clandestinas, integradas por policiais da ativa
e aposentados, além de bombeiros e
agentes penitenciários, dominam
92 favelas e morros do Rio.
Esse assunto está na mídia e, por
isso, me lembrei da conversa que tive com um jovem morador da Baixada Fluminense, num boteco, cinco anos atrás. "Onde eu moro não
tem bandido", garantiu-me ele.
- Como não tem bandido?
Sorriu e, voz baixa, confidenciou:
- Bandido que aparece lá ou se
manda, ou morre, amizade.
E, então, decidiu me contar tudo.
A coisa começou quando um tio dele, então delegado de polícia, prendeu o chefe do tráfico dali. Um ano
depois, o bandido estava em liberdade e matou um filho dele, por vingança. O policial, então, refletiu: "Se
eu prender esse bandido de novo, ele
em breve estará solto pela Justiça e,
dessa vez, quem vai morrer sou eu.
Vou acabar com ele antes". Juntou
alguns policiais de sua confiança e
saiu à caça do bandido até encontrá-lo e liquidá-lo. E isso se tornou uma
norma. Mais tarde, denunciado, resolveu aposentar-se, mas não parou
de perseguir os bandidos da região,
com apoio de comerciantes locais.
Essa deve ter sido uma das primeiras milícias surgidas no Rio, para dar
combate aos traficantes e expulsá-los das comunidades pobres, tornando-se, de fato, um novo problema para a segurança pública.
- Como a polícia é corrupta e a lei,
complacente, o jeito foi tomarmos o
pião na unha, disse o rapaz, lembrando o relato de seu tio.
E o jovem prosseguiu:
- Lá onde eu moro, quando pinta
um bandido, a milícia é informada.
Durante as festas de fim de ano, aumentam os assaltos no Rio todo,
mas não lá. Logo aparece, colado nas
paredes das lojas e dos bares, um
aviso ao bandido que for visto na cidade. "Fulano, tem 24 horas para
dar no pé. Ou se arranca ou morre."
- E a população, o que pensa?
- O que você acha? Tem gente
agora que dorme de janela aberta,
cara. Ninguém se atreve a roubar,
assaltar, nada disso. As crianças
brincam na rua sem medo.
- Mas a milícia achaca os moradores, não?
- Os comerciantes contribuem e
quem pode ajudar ajuda.
- De qualquer modo, eles agem à
margem da lei. Não se pode matar
um cidadão, ainda que criminoso.
- Só morrem os que se atrevem a
enfrentar a milícia. Mas quase ninguém se atreve, prefere cair fora, ir
traficar e roubar onde é permitido.
- Mesmo assim, essa ação da milícia é também ilegal. Sem falar que
não existe pena de morte no país.
- Claro, mas sabe o que eles dizem? Que a lei favorece ao bandido,
e a polícia se alia ao traficante para
tirar vantagem.
- Isso é verdade. Até oficiais, gente da cúpula da PM, em vez de combater o tráfico, toma dinheiro dele.
- Aquele bandido que meu tio
prendeu e depois matou o filho dele
foi solto pela Justiça. Os menores de
idade roubam e matam confiando
na lei. Elias Maluco estava preso, esperando julgamento, mas foi solto
porque o prazo legal estourou. Meses depois, ele matava o jornalista
Tim Lopes, esquartejava e assava os
pedaços dele no "microondas". O
policial honesto que mora na favela
está mais ameaçado que o cidadão
comum. Ele sai de casa à paisana,
com a farda dentro de uma bolsa para ninguém saber que é da polícia.
Nem a farda pode ser estendida no
varal de roupas. Ou ele adere ao crime e morre, ou adere à milícia.
- Isso tudo é verdade, mas quem
age à margem da lei, seja por que razão for, comete crime. E a milícia
tanto pode matar o bandido quanto
qualquer outra pessoa. Seu poder é
discricionário. É para evitar isso que
existe a Justiça.
- Existe no papel. A milícia nasceu porque o Estado não dá segurança ao cidadão e a Justiça é complacente. Qual a saída? Devolver a
comunidade aos traficantes?
-Claro que não. Se, em Nova York
e Medellín, o problema foi resolvido
dentro da lei, é possível fazê-lo aqui.
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