São Paulo, quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

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NINA HORTA

Os grandes chefs e seus livros



Ele adora se enturmar com os cientistas que descobrem fragrâncias as mais doidas, como "cheiro de restaurante chinês"


AI, QUE aflição, só agora me dei conta de que os livros de cozinha de grandes chefs não são mais dirigidos à ralé, como nós. Não sei se é bom ou ruim. Perdemos aquela emoção de duplicar exatamente o delicioso jantar do chef. Mas ir comer o extraordinário só em restaurantes não é mau, concordam?
Por exemplo, vejo o livrão do Fat Duck, do Heston Blumenthal, inglês polêmico. O Rogério Fasano escreveu uma crônica tão irada sobre a comida do restaurante dele (há tempos) que fiquei abalada nos alicerces e nem quero pôr o pé no quarteirão do restaurante, isso porque acredito no crítico. Mas, meu amigo Ruggero, você nunca passou por uma fase onde queria provar todas as novidades, comer goiaba verde com sal na feira interiorana, provar a comida do Boulud, experimentar lagartos vendidos nas estradas mexicanas? Desconfio que não. Tudo bem. Também confesso a preguiça atual de sair dos meus pagos para comer uma couve-de-bruxelas desidratada, mas, em homenagem à velha mocidade e por vocês, leitores, ainda considero a ideia.
Comprei o "The Fat Duck Cookbook", ed. Bloomingdale. Já caçoei aqui, na coluna, das receitas dele. Há que ter uma paciência de santo. Resolvi, no entanto, encarar o livro com mais cuidado e o Blumenthal, para começar, escreve bem. Acho complicado ler esses "coffee-table books", tenho preconceito e imagino que se a Bíblia tivesse sido escrita naquele formato, o mundo seria outro. Agora a editora diminuiu o tamanho do livro, mas era uma coisa inacreditável, tipo ajeitar o livro no chão, aberto, e ficar em pé por cima como em "Alice no País das Maravilhas".
Nós, os tradicionais, amantes do lombo mineiro com couve assustada na frigideira, da pasta da nonna, temos que dar uma boa nota ao entusiasmo e empenho desse rapaz autodidata (bem marqueteiro, também), pela vontade de penetrar nos meandros da química e da física e descobrir o que vai por dentro das panelas.
Qualquer dia vá que descubra por "serendipity" um benefício que torne mais fácil executar uma gostosura. Blumenthal procura também experiências de infância, o que corresponde para nós ao biscoito de polvilho Globo com cheiro de Copacabana, ao barulho de charrete em Serra Negra etc. e tal. Penso que comer com iPod no ouvido, com ondas quebrando na praia, por exemplo, é no mínimo naïf, coisa que os futuristas, como Marinetti, já experimentaram. Datado, com certeza. Mas o pique do Blumenthal dá inveja. Ele adora se enturmar com os cientistas da Firmenich (Google) que descobrem fragrâncias as mais doidas, como "cheiro de restaurante chinês", "cheiro de loja de doce". Imagine se conseguíssemos o "cheiro do chá do Mappin nos anos 50". Era só juntar os violinos, nem precisaríamos comer. Mas é muito proveitoso esse caminho, ninguém pode negar. "Googlem" (ah, esse verbo!) a VCF (Volatile Compounds in Food). Escreva "maracujá", por exemplo, e aparece uma lista dos componentes da fruta. Ou "googlem" um componente e vejam em que ingredientes ele aparece. Muito interessante para o cozinheiro juntar ou separar sabores. Heston, já com três estrelas no "Michelin", se dá às mil maravilhas com Hervé This, quer saber de tudo, o tempo todo. O cientista das panelas o acha obcecado e perfeccionista, tendo comido, feitos por ele, os melhores e piores pratos de sua vida.
Entre no YouTube e vai vê-lo em pessoa, tentando fazer a pele de pato mais crocante, o frango assado mais macio... Não sei se alguma coisa na vida vale tanto esforço.
Tenho lido que para evitar o Alzheimer é bom aprender uma língua nova. Afoita e impulsiva (ou com Alzheimer adiantado), entrei num curso de bobos, de "dummies" em química, pela internet. "Dummies?" Me pegaram, e não dão o dinheiro de volta nem mudam o curso! Já começa com uma equação das boas... Va-t-en Satan!

ninahorta@uol.com.br


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