São Paulo, sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

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CARLOS HEITOR CONY

A culpada de tudo

Uma boa conjuntura não precisa de definição. Ela é impessoal e intemporal, como a chuva e o vento

CONJUNTAMENTE DESIGNADA, conjuntura nada tem a ver com o conjuntivo nem chega a ser sinônimo de conjunção. Nem mesmo é corruptela de conjectura. É pura e belamente "conjuntura", palavra mágica que deputados, cientistas sociais, economistas, deputados, senadores, ministros de Estado, reitores, presidente da República e técnicos de futebol ousam empregar em total e revoltante impunidade.
Mas há conjunturas e conjunturas. Nada que se equipare, por exemplo, à conjuntura saída da austera boca de um ministro da Fazenda ou do Planejamento.
Parece que a palavra foi inventada por ou para eles. Ou, se eles não inventaram a palavra, resta a alternativa: a palavra foi que inventou os ministros das pastas que lidam, interpretam e tentam resolver a conjuntura.
Quando é pronunciada por tais e tamanhas autoridades, há um terror de apocalipse, de dilúvio, de Sodoma e Gomorra em nossas indefesas carnes plebeias.
Imaginamos coisas tremendas que estão por acontecer, incêndios, terremotos, enchentes, caos, degola de criancinhas, estupros, fome, peste e ranger de dentes.
Acontece que nada disso acontece. Toda vez que proferida com certa constância ou oportunidade, quem acaba mudando não é a conjuntura, é o ministro.
Surge outro titular que dura o que durará a conjuntura. Esses macetes -que a ignara plebe não compreende nem chega a temer- fazem parte também das antigas, atuais e futuras conjunturas.
E, afinal, o que significa conjuntura? Podia buscar erudição no Aurélio ou no Houaiss, acessar o dicionário embutido no meu notebook, mas uma boa conjuntura não precisa de definição nem de explicação.
Ela é impessoal e intemporal, como a chuva e o vento. Significa amplas e fartas coisas: queda do dólar, preço do café, entressafra da cana-de-açúcar, seca no Nordeste e enchentes na região serrana do Rio, desmatamento na Amazônia, geada em Santa Catarina, a safra do coco na Bahia, escândalo administrativo em São Paulo, marcha de lavradores no Nordeste, ócio com ou sem dignidade em Brasília.
Conjuntura pode ser, também, o latifúndio, o minifúndio, o movimento dos sem-terra, o direito à propriedade, e, sobretudo, a necessidade das medidas provisórias que criam, aumentam ou modificam a própria conjuntura.
De certa forma, conjuntura inclui um conjunto de problemas à espera de soluções, mas, apesar de nada significar realmente, quando o orador de sobremesa, de comício ou do Congresso, o colunista da economia ou política conseguem encaixar no discurso ou no texto a palavra fatal, a pátria, o orador e o escriba estão salvos.
Explicada a significação, expliquemos as serventias. Como disse acima, há a conjuntura política, a social, a econômica.
Mas a conjuntura mais conjuntura, conjuntura tamanho-família, sem prazo de validade, a que vale mais e explica menos, é a inarredável conjuntura político-social-econômica. Essa é uma espécie de "royal straight flush" do conceito e da própria palavra.
Um espírito de porco poderia afirmar, com alguma dose de razão, que a palavra em si não significa nada. Faz parte daqueles vocábulos que a lógica de Aristóteles e a ontologia de Tomás de Aquino incluem na categoria de "non significans", ou seja, não significante.
Mas como poderemos convencer os políticos, os cientistas sociais e os escribas de que a palavra nada significa e que, em linhas gerais, seus discursos, pronunciamentos e textos também nada significam?
Sem determinada conjuntura, não haveria razão para tantos discursos, seminários, jornadas e jornalistas interessados em destrinchar a conjuntura.
Bom, paremos por aqui, antes que o cronista, em face da conjuntura, perca ao mesmo tempo a prosápia e o emprego.
Lembro um colega de outra era e de outra conjuntura, que sabia tudo sobre o mercado da soja e o preço do algodão: foi demitido e nunca mais arranjou ofício na mídia.
Tudo porque atribuiu a um poderoso ministro da Fazenda a responsabilidade pela complicada conjuntura que o país atravessava.
Mesmo sem saber a qual conjuntura ele se referia, pois havia várias e conflitantes, acharam por bem expulsá-lo da desconjuntada conjuntura existente.


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